Presença de patrulha federal em terras indígenas reaviva ressentimentos históricos e tensões raciais

Jack Healy

THE NEW YORK TIMES

Estava escuro como breu quando a Patrulha de Fronteiras apareceu na casa de Raymond Mattia, num canto remoto da reserva Tohono O’odham, no sul do Arizona, para investigar uma denúncia de tiros.

Agentes de fronteira, contrabandistas e migrantes normalmente eram vistos no vilarejo no deserto, a 1,5 km da fronteira sul, onde a família Mattia vive há décadas. Mattia costumava patrulhar sua propriedade com uma lanterna. Naquela noite de maio, ele disse a uma irmã mais velha por telefone que estava saindo para encontrar os agentes.

Mas num instante caótico três agentes da Patrulha de Fronteiras atiraram e mataram Mattia quando o encontraram no deserto; ele foi atingido nove vezes, segundo a autópsia. Um relatório da Patrulha de Fronteiras diz que ele jogou um facão embainhado na direção de um oficial e depois “abruptamente estendeu o braço direito”. Sua família disse que ele estava desarmado e não representava ameaça.

Cerca demarca fronteira entre EUA e México no território indígena Tohono Oodham, no Arizona – Rebecca Noble – 24.jun.23/The New York Times

Sua morte provocou protestos na nação Tohono O’odham, que fica ao longo de 100 km da fronteira sul, e reavivou antigos ressentimentos sobre a presença da agência policial federal no território indígena.

Membros da tribo passam por postos de controle de segurança na fronteira, estacionados fora da reserva, a caminho de Tucson, no Arizona, a cidade grande mais próxima, e dizem que são habitualmente parados e interrogados –encontros que criaram uma camada de medo e desconfiança.

“Estou sempre em guarda, sempre com medo, nervosa”, disse Vivian Manuel, que mora perto da aldeia de Mattia. “Eles nos assediam: ‘o que está fazendo aqui? Você é membro da tribo?'”

Mesmo assim, os líderes de Tohono O’odham chamaram a Patrulha de Fronteiras de aliada contra o contrabando humano e de drogas numa reserva de 13 mil habitantes do tamanho de Connecticut. Mais de 600 migrantes morreram lá na última década tentando cruzar os desertos e montanhas irregulares, de acordo com o grupo de ajuda a migrantes Humane Borders. A tribo diz que o tráfico danificou sua terra e custou milhões em trabalho extra para sua força policial de cerca de 60 membros.

John R. Modlin, chefe da Patrulha de Fronteiras no setor de Tucson, descreveu as parcerias tribais como “essenciais para nossa missão de segurança nacional”. As redes sociais da patrulha estão cheias de publicações mostrando agentes ajudando a tribo a combater incêndios florestais, plantando cactos e detendo traficantes que cruzavam a reserva com migrantes enfiados no porta-malas de carros.

A Patrulha de Fronteiras divulgou um longo relato do assassinato de Mattia, bem como imagens de câmeras corporais. Uma investigação está sendo conduzida pelo FBI e pelo Departamento de Polícia de Tohono O’odham. As agências se recusaram a discutir o caso. Ned Norris Jr., presidente da Tohono O’odham, disse em comunicado que tinha “sérias preocupações” sobre o assassinato de Mattia, mas estava aguardando o julgamento. Ele não respondeu a um pedido de comentário.

Posto de controle pelo qual todos os indígenas precisam passar para entrar em sua reserva no Arizona, próxima à fronteira entre EUA e México – Rebecca Noble – 24.jun.23/The New York Times

A notícia se espalhou por outras tribos perto da fronteira, forçando alguns líderes a enfrentarem seus próprios sentimentos contraditórios sobre a presença federal em suas terras. “Sempre nos preocupamos com os dois lados, sejam os cartéis ou alguns dos agentes que controlam essas patrulhas de fronteira que têm armas”, disse Peter Yucupicio, presidente da tribo Pascua Yaqui, cuja sede fica em Tucson. “Você começa a se perguntar como membro da tribo: se eu fizer algo errado, vou levar um monte de tiros?”

Alguns indígenas afirmaram que não se incomodam com a presença da patrulha. Mas outros disseram que um histórico de desentendimentos os deixou desconfiados, como um incidente em 2014 no qual um agente da Patrulha de Fronteiras atirou e feriu dois homens de Tohono O’odham que tinham roubado um carro e acidentalmente rasparam na caminhonete estacionada do agente numa noite escura. Mais tarde, um juiz federal concluiu que os tiros foram injustificáveis e indenizou os homens em US$ 250 mil.

“Eles precisam nos ver como pessoas, não como se fôssemos todos criminosos”, disse Angelita Reino Ramon, cujo filho de 18 anos morreu depois de ser atropelado por um caminhão da patrulha há 20 anos, no que um juiz mais tarde chamou de acidente inevitável. “Eles precisam ter mais respeito.”

As circunstâncias que levaram à morte de Mattia na noite de 18 de maio ainda são nebulosas. A ligação começou por volta das 21h, quando a polícia tribal pediu ajuda à Patrulha de Fronteiras para atender a um relato de dois tiros ouvidos na aldeia de Mattia.

Em gravações de rádio e vídeos de câmeras corporais, atendentes e policiais disseram que não estava claro de onde vinham os tiros. Antes de sair, eles avisaram que alguém na área poderia ter um fuzil.

Às 21h37, os agentes e pelo menos um policial tribal chegaram ao vilarejo e se espalharam pela casa escura de blocos de concreto de Mattia. Havia apenas um fiapo de lua naquela noite e, no vídeo, suas lanternas mal penetravam na paisagem fantasmagórica de móveis de jardim, arbustos e cactos.

“Pensei que alguém tivesse corrido para cá”, disse um agente, seguindo para o mato.

O oficial tribal e os agentes encontraram Mattia perto de uma estrutura de madeira a cerca de cem metros de sua casa. Eles mandaram que ele saísse com as mãos para cima. “Eu estou [saindo]”, disse ele e jogou para o ar um facão embainhado, que caiu perto dos pés de um policial.

Vários policiais começaram a gritar, ordenando que Mattia tirasse as mãos do bolso e se deitasse no chão. Segundos depois, dispararam a rajada fatal de tiros.

Enquanto os agentes algemavam e viravam Mattia de costas, um deles gritou para “pegar a arma” que, segundo eles, estava sob o corpo inerte. Em vez disso, eles encontraram um celular e seu estojo.

Os parentes de Mattia dizem ter pouca fé nas investigações e têm lutado para obter respostas tanto do governo tribal quanto da Patrulha de Fronteiras.

Frustrados, uma dúzia de parentes e simpatizantes vestiram camisetas vermelhas com a foto de Mattia e realizaram um pequeno protesto na rodovia, em frente a um posto da Patrulha de Fronteiras, fora dos limites da reserva.

Eles queimaram ramos de arbustos e se revezaram com cartazes que pediam justiça, amontoados sob guarda-chuvas para se proteger do sol. A família de Mattia o descreveu como um líder cerimonial em sua comunidade, que fazia esculturas em madeira e adorava caçar veados. Sua irmã, Annette Mattia, disse que a família vive na mesma área há gerações, mas que os tiros destruíram seu senso de lar.

“Nem queremos mais ficar aqui”, disse.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/08/agentes-dos-eua-matam-indigena-a-tiros-e-expoem-conflitos-na-fronteira.shtml

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