Permissão prévia, dada por general Heleno e endossada por militar que o sucedeu, é para projeto de mulher já condenada por tráfico e denunciada por receptação
MANAUS
Com aval do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a ANM (Agência Nacional de Mineração) concedeu um alvará de pesquisa, por período de três anos, para busca de ouro em uma área de 9.800 hectares vizinha à Terra Indígena Yanomami.
O alvará foi concedido no último dia 14 a Creusa Buss Melotto, que já cumpriu pena de prisão por tráfico de drogas e que foi denunciada pelo Ministério Público por suspeita de receptação de pneus roubados.
A área solicitada por Melotto fica na faixa de fronteira, em Roraima, e por isso é necessária uma autorização prévia por parte do Conselho de Defesa Nacional. Esses atos, chamados assentimentos prévios, são assinados pelo ministro do GSI da Presidência da República, que é o secretário-executivo do conselho.
O assentimento ao projeto de exploração de ouro em área a 7,8 km da terra yanomami foi dado pelo ministro do GSI no governo Jair Bolsonaro (PL), general da reserva Augusto Heleno. A autorização foi dada em 14 de dezembro de 2022 e publicada no Diário Oficial da União no dia seguinte, no apagar das luzes da gestão passada.
A história foi revelada pela Folha em reportagem publicada em 16 de janeiro.
A partir da revelação, o partido Rede Sustentabilidade apontou impacto aos yanomamis e pediu ao STF (Supremo Tribunal Federal) que anule a autorização dada pelo ministro do GSI de Bolsonaro.
O pedido foi feito no curso de uma ação no STF movida pelo partido, também com base em reportagens da Folha, de dezembro de 2021. As reportagens revelaram que Heleno autorizou o avanço de sete projetos de exploração de ouro em terra indígenas na região conhecida como Cabeça do Cachorro, no Amazonas, uma das mais preservadas da Amazônia.
A presidente do STF, Rosa Weber, pediu ainda em janeiro informações sobre os atos de Heleno –incluído o derradeiro, de exploração de ouro em área vizinha à terra yanomami, em Roraima– ao atual ministro do GSI e à direção da ANM, já no governo Lula.
Foi neste contexto que o general da reserva Marco Gonçalves Dias, ministro do GSI da Presidência de Lula, avalizou o ato de seu antecessor e ex-colega de farda.
O ministro enviou uma resposta à presidente do STF em 20 de janeiro. Segundo ele, o ato de Heleno é “legítimo” e “merece subsistir”.
A área a ser explorada já tem ocupação e partes coincidem com dois assentamentos de reforma agrária, sob gestão do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), conforme o ofício do general.
Um terceiro assentamento separa a terra indígena da área para exploração de ouro, apontou o documento do ministro do GSI. Nos assentamentos vivem 600 famílias, e não há informação sobre consultas a elas a respeito do projeto privado de exploração de ouro nos territórios.
O processo para abertura de garimpos envolve uma área 60 vezes maior do que o parque Ibirapuera, em São Paulo.
À Folha, Melotto disse que vai começar a prospecção por ouro em 15 dias, por meio da Coopercajaí (Cooperativa de Exploração Mineral de Mucajaí). Mucajaí é o nome de um dos rios que cortam a terra yanomami e também o nome de um município de Roraima, a 40 km de Iracema (RR), cidade onde fica a área com alvará de pesquisa concedido pela ANM.
Segundo a garimpeira, a pesquisa inclui ouro e cassiterita, já bastante explorados de forma ilegal dentro da terra indígena.
Em 20 de janeiro, o governo Lula declarou estado de emergência em saúde pública no território, em razão da explosão de casos de malária e de doenças associadas à fome, como desnutrição grave, diarreia aguda e pneumonia. A crise humanitária tem como uma das causas a invasão de mais de 20 mil garimpeiros ilegais. Uma operação iniciada em fevereiro tenta a desintrusão da terra indígena.
“Vou atrás das ‘fofocas’ dos garimpeiros antigos, para saber onde pesquisar. Vamos com picareta, pá e sonda manual atrás de ouro e cassiterita”, afirmou Melotto. A pesquisa também vai ocorrer nos assentamentos, segundo ela. “É um trabalho de paciência. Quando achar, mandamos para análise por laboratórios e para a ANM, para a emissão da licença de operação.”
A garimpeira disse já ter cumprido sua pena e ser responsável por uma cooperativa com mais de 50 garimpeiros em Roraima, além de uma segunda, em Pontes e Lacerda (MT), onde já há exploração de ouro.
No processo em curso no STF, o ministro da AGU (Advocacia-Geral da União), Jorge Messias, também se manifestou, em um parecer assinado em 7 de fevereiro. Segundo Messias, o atual governo se baseia em “fundamentos decisórios mais rígidos” para indeferir requerimentos que interfiram em terras indígenas.
O advogado-geral da União, porém, citou a posição do GSI e disse que a autorização para exploração de ouro em área vizinha à terra yanomami não contempla uma sobreposição com o território.
Já a ANM, no mesmo processo, afirmou que a outorga de um alvará pelo órgão não depende de autorização prévia do Incra, quando a área envolve assentamentos da reforma agrária. Isto só deve ocorrer para ingresso na área, segundo a ANM.
Sobre o alvará concedido, a agência disse, em nota, que a outorga não contempla lavra, mas apenas pesquisa para dimensionamento das reservas, e que o ato seguiu todos os preceitos legais.
“Todos os procedimentos de outorga em faixa de fronteira foram seguidos e a outorga foi precedida do assentimento expedido pelo Conselho de Defesa Nacional”, afirmou o órgão. Segundo a agência, o Código de Mineração não prevê análise de antecedentes criminais para a expedição de uma autorização de pesquisa.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, também não viu problema na pesquisa de ouro. “O receio é compreensível, muito especialmente considerado o contexto de crise humanitária que atingiu os indígenas yanomamis. Não há, porém, indicação nos autos de ato atual autorizativo de atividade exploratória com potencial impacto sobre a região que acenda alerta imediato.”
No programa Roda Viva, da TV Cultura, veiculado na segunda (20), a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, foi questionada sobre o aval dado pelo GSI de Lula à pesquisa de ouro em área vizinha aos yanomamis. Segundo ela, Lula pediu informações à ANM, e o ministério fez o mesmo. “Se é ilegal, todo mundo tem de combater, em especial o governo”, disse a ministra.
A ação no STF é relatada pelo ministro Nunes Marques, que ainda não proferiu decisões sobre as autorizações dadas.
Os assentimentos prévios para exploração de ouro na Cabeça do Cachorro foram anulados pelo próprio general Heleno, diante da abertura de uma investigação pelo MPF (Ministério Público Federal) para apurar as revelações feitas pela Folha e após comprovação pelo governo de que os atos se referiam a áreas em terras indígenas, o que é ilegal.
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