Indígenas lamentam falta de reconhecimento para o trabalho espiritual na busca por menores perdidos durante 40 dias
BOGOTÁ
Durante os 40 dias que se passaram entre a queda de um avião na Amazônia colombiana, no início de maio passado, e o resgate das quatro crianças a bordo, que ficaram perdidas na selva local, anciãos da etnia uitoto fizeram um trabalho espiritual ininterrupto pelos menores —também uitotos por parte de pai.
“Eles deram força às crianças, evocando a proteção dos espíritos”, diz Rufina Sanchez, 50, membro da Opiac, a Organização dos Povos Indígenas da Amazônia Colombiana, sediada em Bogotá.
Em 9 de junho, os quatro irmãos –de 1, 5, 9 e 13 anos de idade– foram resgatados na região de Caquetá, no sul colombiano, após a operação de busca que já começava a ver suas esperanças minguarem.
No acidente aéreo também estavam a mãe das crianças, Magdalena Mucutuy, o piloto Hernando Morales e o líder indígena Herman Mendoza Hernández.
O caso vem sendo explorado politicamente pelo governo de Gustavo Petro, para obliterar crises internas de sua gestão, que tem tido dificuldades para aprovar sua agenda de reformas no Congresso.
É o governo que decidirá, por exemplo, o destino dos quatro irmãos, em razão de conflitos familiares e denúncias de maus-tratos. Petro também quer fazer um documentário sobre a história.
Mas, para além da exploração política do episódio, os indígenas locais se ressentem também da falta de visibilidade para o saber tradicional, compreendido como decisivo para a sobrevivência das crianças.
“Não se dá visibilidade ao trabalho espiritual de muitos anciãos envolvidos, ao conhecimento dos indígenas da Amazônia colombiana”, diz Sanchez. “Foi isso que manteve as crianças vivas por tanto tempo e permitiu que fossem encontradas, além de um trabalho de busca coordenado com os indígenas.”
Os uitotos conectam a Amazônia colombiana à brasileira. A etnia é uma das mais numerosas no país vizinho e passou por ciclos de exploração da borracha que resultaram em condições de escravidão, conflitos, mortes e expulsão de seus territórios. É nesse contexto que indígenas alcançaram o Peru e o Brasil, onde a etnia tem outra grafia —witoto.
O levantamento mais recente do Instituto Socioambiental (ISA) sobre os povos indígenas no Brasil aponta a presença dos uitotos em ao menos três territórios demarcados nas regiões do médio e alto rio Solimões. São regiões que estão no fluxo natural do rio Amazonas —ou Solimões, no Brasil—, que corre de um país a outro.
As terras indígenas, todas no estado do Amazonas, são a Barreira da Missão, em Tefé, onde também estão indígenas de outras quatro etnias; Méria, em Alvarães, com mais três etnias; e Miratu, em Uarini, também com mais três etnias, conforme o trabalho feito pelo ISA.
O processo de mapeamento dos uitotos no Brasil é recente —foi a primeira vez, por exemplo, que o levantamento do ISA inclui essa etnia. De acordo com dados usados no mapeamento, existem pelo menos 6.000 uitotos na Colômbia, 1.900 no Peru e 80 no Brasil.
A inclusão dos uitotos no mapa da Amazônia brasileira se deve à atuação de novas lideranças indígenas, como Vanda Witoto, 35, filha de um uitoto e uma kokama. Na universidade, em Manaus, ela passou a se dedicar ao ativismo indígena e ao mapeamento de suas origens.
Na infância, Vanda viveu na Aldeia Colônia, em Amaturá (AM), cidade mais próxima da fronteira com a Colômbia do que territórios já demarcados onde estão outros uitotos. Segundo ela, o mapeamento feito da etnia não contempla todos os territórios, como o de sua família, não demarcado.
“Minha bisavó e minha avó vieram de Putumayo, na Colômbia, e sempre disseram de onde nós éramos”, diz Vanda, que tentou se eleger deputada federal em 2022, sem êxito. “A borracha causou um impacto extremo na região. Os indígenas foram massacrados, houve dizimação. Eles foram escravos da borracha.”
Putumayo é um estado vizinho de Caquetá, a região onde as crianças foram resgatadas semanas após a queda do avião que se dirigia a Guaviare, um outro estado amazônico. Elas viviam na aldeia de Puerto Saballo, em um dos lados do rio Caquetá.
Segundo Vanda, os uitotos no Brasil e os uitotos na Colômbia são o mesmo grupo étnico, mas de clãs e dialetos distintos. “Aqui [no Brasil], a igreja escondeu os uitotos no território, como forma de proteção. Eles só começaram a ir à cidade no começo da década de 1990. E ouviam coisas como: ‘Não falem que vocês são uitotos’.”
Ela compartilha a mesma opinião de Rufina Sanchez, a liderança indígena que atua no lado colombiano: as abordagens sobre o caso do resgate dos quatro irmãos não reforçam a importância da cultura uitoto para a sobrevivência das crianças.
“Não se fala sobre como saberes dos povos indígenas foram decisivos para o resgate com vida das crianças. Não se reconhece nossa espiritualidade. Nossos avós na Colômbia passaram 40 dias ‘mambeando’, cuidando do corpo do outro por meio do tabaco e de rituais.”
“Nossos avós ensinam desde muito cedo como manejar a floresta: quais frutas comer, quais cipós têm água. Isso faz parte da nossa experiência como uitotos”, afirma. Após as crianças serem encontradas, descobriu-se que um elemento-chave para que sobrevivessem foi a atuação de Lesly, a mais velha, que colheu frutos na selva para alimentar os menores conforme havia sido ensinada por familiares.
Os quatro irmãos estão internados há mais de um mês no Hospital Militar de Bogotá. Recuperaram peso e estão mais interessados em brincar e ver TV do que em falar sobre o que viveram por 40 dias, segundo autoridades do governo da Colômbia.
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