A necessidade de ocupar território brasileiro gerou uma classe intermediária mestiça
Ricardo Nitrini
É neurologista, professor titular sênior do departamento de neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
[RESUMO] Professor da USP compara as manifestações de racismo no Brasil e nos EUA e avalia como a miscigenação, incentivada aqui por Portugal, por razões econômicas e territoriais, e desencorajada lá, acabou por levar a contextos de preconceito e exclusão racial distintos nos dois países. Conhecer as engrenagens históricas que moldaram o intolerável quadro de racismo é fundamental para superá-lo, afirma o texto.
O racismo manifesta-se de modo diferente em culturas distintas. Sempre tive a impressão de que o racismo no Brasil era e ainda é muito diferente do existente nos Estados Unidos, por exemplo.
Quando mais jovem, cheguei a julgar que éramos menos racistas no Brasil. Alguns amigos disseram-me que esta minha impressão era, de certa forma, ingênua, e que o racismo era até mais forte aqui do que lá. Lembravam-me que o Brasil aboliu a escravidão somente 20 e poucos anos mais tarde do que os Estados Unidos e que fomos o último país da América a aboli-la.
Mas o racismo realmente manifesta-se de modo diferente no Brasil. Nos Estados Unidos, ainda persiste, pelo menos em parte, “a regra de uma gora de sangue”, pela qual um único ancestral africano bastava para caracterizar o indivíduo como negro. Um indivíduo cujo bisavô fosse afrodescendente ainda poderia ser considerado negro —e ser discriminado.
No Brasil, a situação era bem distinta —não por melhores qualidades humanas dos portugueses que dominaram o país por mais de 300 anos, ou por qualidades humanas dos brasileiros.
Desde já quero deixar claro que não pretendo discutir se a forma de racismo que se desenvolveu neste país é melhor ou ainda pior do que nos outros. Acho que esta resposta exige estudo mais profundo e é mais do que necessário buscar este conhecimento a partir da experiência dos que se dedicam ao estudo desses temas.
Uma interpretação histórico-econômica
Portugal não tinha população suficiente para manter território tão grande. Houve conflitos por posse de terras, principalmente com franceses e mais tarde com holandeses, que chegaram a ter domínio sobre áreas de produção de açúcar em Pernambuco e acabaram expulsos pelos habitantes locais que formaram a primeira coalização armada de brancos, índios e negros, pois Portugal não tinha exércitos para combatê-los.
O maior receio de Portugal, contudo, foi sempre na relação com os espanhóis que dominavam praticamente todos os países vizinhos ao Brasil.
As fronteiras mais ameaçadoras para o império colonial português no Brasil ficavam na região sul, devido ao desenvolvimento das colônias espanholas da região do Rio da Prata, onde se situavam alguns dos principais portos de saída para o comércio com a Europa.
O Brasil-português almejava conseguir estabelecer uma província no Rio da Prata, e chegou a conseguir este intento, sendo posteriormente derrotado. Havia, porém, o receio de perder o que já era seu próprio território nas províncias que hoje constituem os estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.
Com a descoberta do ouro em Minas Gerais no final do século 17, o Brasil tornou-se mais atraente para outros povos conquistadores. O ouro tornou-se a principal fonte de riqueza para Portugal e havia a necessidade, mais urgente do que nunca, de defender o território.
Na época do grande avanço da corrida do ouro no Brasil, Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal, era o primeiro-ministro de Portugal. Usualmente caracterizado como um déspota esclarecido, demonstrava muita preocupação com o Brasil Colônia, que já era a principal fonte de recursos para a metrópole.
Ele percebeu que era necessário habitar o Brasil com portugueses para ter direito ao reconhecimento da posse do território, de acordo com o princípio denominado “uti possidetis” (princípio do direito internacional que reconhece a legalidade e a legitimidade do Estado que ocupa e que tem o controle político e militar de uma região).
Com este objetivo tentou colonizar a região sul com súditos portugueses que habitavam o arquipélago dos Açores e a ilha da Madeira, mas este esforço não surtiu efeitos, pois não havia número suficiente de habitantes nas ilhas e nem mesmo na metrópole.
Legislação sobre discriminação
Então foram promulgadas duas leis importantes.
O Alvará Régio de 4 de abril de 1755, de dom José 1º, incentivava os casamentos entre portugueses e indígenas e proibia a discriminação de mestiços e o uso de termos pejorativos para designá-los. Todos tornavam-se súditos do império com iguais direitos aos conferidos aos nascidos de casamentos entre portugueses ou brancos.
Ainda em 1755, outra lei aboliu a escravidão indígena nas províncias de Grão-Pará e Maranhão. Três anos mais tarde, essa abolição foi estendida para todo o país.
A questão da posse territorial foi discutida na correspondência que o marquês de Pombal mantinha com seu meio-irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado, governador e capitão-geral das capitanias unidas do Grão-Pará e Maranhão.
Pombal recomendou “que se incentivasse a miscigenação entre portugueses e índios para se assegurar um crescimento contínuo da população na área, que se trouxessem casais de Açores e que se estimulasse a importação de escravos africanos”.
O duque Silva-Tarouca —nobre português que se tornou figura importante no império austríaco— escreveu entusiasmado a Pombal em 1752 (sobre a lei que somente seria aprovada em 1755): “Os reis de Portugal podem vir a ter no Brasil um Império como a China. Mas deveria haver um aumento da população. Mouros, brancos, negros, mulatos ou mestiços, todos servirão, todos são homens e são bons, se bem governados”.
Nesta carta fica claro que a miscigenação com índios era bem-vinda, mas não apenas com índios.
Em outubro de 1799, o rei de Portugal manifestou-se sobre a distinção entre “vassalos europeus e vassalos americanos” em mensagem ao governador de Minas Gerais: “sua Alteza real manda-lhe advertir que seus vassalos são todos portugueses, e todos igualmente aptos para qualquer emprego em qualquer parte de seus domínios, e que nunca permitirá que ninguém se lembre de fazer entre elles distinções… “. Certamente poderiam ser brancos, indígenas, afrodescendentes ou mestiços, desde que fossem homens-livres.
A miscigenação bem-vinda
Portanto, a miscigenação fez parte de um plano de poder territorial, que incluiu indígenas e também afrodescendentes. Quando comentei com o sociólogo Domenico De Masi sobre esta ideia, ele me respondeu imediatamente: “É sempre a economia”.
Esta é a diferença fundamental em relação ao que ocorreu nos Estados Unidos, em que a miscigenação com afrodescendentes não era admitida.
A imigração europeia foi sempre grande para os Estados Unidos enquanto era pequena para o Brasil, onde não havia população branca em quantidade suficiente para serviços intermediários entre os patrões e os escravos. Este papel acabou por ser exercido no Brasil por uma classe intermediária: os mestiços.
Portanto, a lei de 1755 regulamentava uma situação que por razões também econômicas já existia na prática muitas décadas antes nos engenhos de açúcar e nas atividades agrícolas, envolvendo mestiços, filhos de brancos com indígenas ou de brancos com afrodescendentes, em atividades e serviços para os quais os brancos não poderiam (ou não queriam) exercer.
Uma análise menos histórica e mais real
Apesar das leis antigas, do interesse econômico e de leis atuais, o racismo persiste no Brasil. Há, ao lado de fatos que revelam uma relativa ausência de preocupações com a raça, outros que refletem que o racismo é uma realidade a ser combatida.
Em uma reportagem da Folha de 2008, o professor Ronaldo Vainfas, da Universidade Federal Fluminense, mencionava uma tradicional disputa de futebol, criada em 1972, de negros contra brancos, reunindo os moradores da favela de Heliópolis e os do bairro de São João Clímaco, na capital de São Paulo.
Segundo Vainfas, os times são montados a partir da autodeclaração dos jogadores. A cada ano, muitos costumavam mudar de uma equipe para outra. Lá pelas tantas, tentando controlar minimamente esse câmbio de cores, alguém disse: “Tudo bem, mas não pode jogar no time dos pretos o fulano que o cabelo voa quando corre”.
Um exemplo da tolerância e da intolerância com miscigenação foi relatado por Laurentino Gomes em seu livro “Escravidão – Volume 3”, quando descreve a experiência do engenheiro André Rebouças ao visitar os Estados Unidos.
Resumidamente, André Rebouças era filho de um conselheiro do Império e de uma negra. Como o pai tinha recursos, André formou-se no Brasil e estudou na Europa. De volta ao Brasil, tinha acesso às rodas sociais mais influentes e amizade pessoal com o conde D’Eu, genro de dom Pedro 2º.
Em 1873, viajou aos Estados Unidos e vivenciou enorme discriminação, não podendo instalar-se em nenhum hotel ou ir a restaurantes frequentados por brancos. Sentiu apenas tardiamente que era afrodescendente. E então assumiu esta posição, tornando-se um abolicionista convicto.
Racismo na atualidade
Mais próximo da realidade nacional atual, vale a pena divulgar o que escreveu o escritor Itamar Vieira Junior em sua coluna na Folha, ao comentar os episódios recentes de racismo contra o jogador Vinicius Jr. na Espanha.
“Na nossa pigmentocracia, meu corpo pardo dificilmente seria comparado ao de um macaco, expressão destinada aos corpos retintos. Numa entrevista de emprego, minha pele clara, ainda que negra, seria capital simbólico que me distinguiria do meu irmão preto. […] Se os pardos são encarcerados e enviados para apodrecerem nos presídios, os corpos retintos são exterminados nas ruas do país pelo Estado brasileiro. Ainda que a dor de Vini seja minha também, eu nunca terei a exata medida de habitar um corpo de pele retinta. Mesmo assim consigo me irmanar na dor de uma história comum”.
E cita a pesquisadora Carla Akotirene, “que nos lembra que o racismo é uma tecnologia de poder tão cruel que é capaz de dividir corpos negros.”
De fato, este é outro aspecto das diferenças entre o racismo nos Estados Unidos e no Brasil. Lá, os afrodescendentes sentiam-se irmanados, tinham um sentimento de classe que os impeliu a formar igrejas, orquestras, equipes esportivas e universidades, por eles e para eles exclusivamente constituídas. A divisão clara entre raças permitiu a formação de líderes e a luta pelo reconhecimento da identidade racial, cultural e pela eliminação do preconceito.
Por outro lado, no Brasil, a miscigenação causou uma divisão entre os afrodescendentes que ainda persiste. Enquanto indivíduos miscigenados (pardos na definição proposta pelo IBGE) podem ser admitidos em altos cargos, como se “brancos” fossem, a situação é diferente para os negros retintos, como o escritor Itamar Vieira Junior tão bem explicou.
A possibilidade de um casamento com uma pessoa branca poderia permitir ao miscigenado o “branqueamento” de seus descendentes e com isso ascender socialmente. Ao assim agir, o afrodescendente iria afastar-se dos seus, deixando-os de lado, para tentar resolver individualmente a questão racial, para si e para a sua família.
O método utilizado no Brasil foi de assimilação étnica e cultural dos afrodescendentes (e dos indígenas) para que tivéssemos o poder territorial. Esta foi a única saída possível para Portugal, e depois para o Império e para a República do Brasil —e não se baseou em princípios éticos ou morais.
Portanto, ainda temos que discutir muito a questão racial no Brasil, para entender por que na minha turma de formandos em uma faculdade pública não havia nenhuma pessoa que se identificasse como afrodescendente, quer entre os alunos, quer entre os nossos professores, quando a maioria da população brasileira é formada por afrodescendentes (56%, segundo o IBGE).
Como professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, tive o privilégio de votar e participar da sessão da congregação em que a política de cotas foi aprovada em nossa unidade.
Por fim, devo afirmar que esta não é minha área de estudo, mas como brasileiro sinto que minha participação é necessária nesta luta contra o racismo. Para aqueles que estudam este tema, tenho a certeza de que este texto é sobre conhecimentos já bem estabelecidos.
Acredito, contudo, que mereçam ainda mais divulgação para que sejam reconhecidos os fatores que determinaram a formação da nossa sociedade do ponto de vista étnico e cultural.
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