Tragédia indígena enfim mobiliza governo federal e a mídia distante
José Henrique Mariante
Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman
Conhecer Inhotim é obrigatório por diversas razões. Uma delas é o pavilhão dedicado a Claudia Andujar, “que fotografou os Yanomami na Amazônia durante uma vida de ativismo”, escreveu no último fim de semana o jornal The New York Times. A reportagem falava de exposição que será aberta na próxima sexta-feira (3), em Nova York, com 200 imagens da fotógrafa e 80 desenhos e pinturas de artistas yanomamis concebidos “para dar visibilidade ao esforço de proteger sua terra, gente e cultura”.
Inhotim é bem mais perto. Em uma das instalações, Andujar relata em vídeo o dilema moral de fazer fotografias dos yanomamis numerados. Foi a saída encontrada nos anos 1970 para garantir assistência médica aos retratados, que não tinham documentos e mudavam de nome com o passar da vida. O depoimento emociona quando ela, de família judia e protestante, nascida na Suíça e criada na Romênia, conta que escapou do Holocausto, em que as pessoas eram marcadas para morrer; no Brasil desconhecido que adotou, seu exercício profissional repetiu o processo, mas para que os indígenas conseguissem sobreviver. Os registros seriam meros retratos 3 x 4. Basta vê-los na parede contígua da exposição para perceber rapidamente como ignoram a burocracia e se transformam em arte.
Andujar, explica o Times, é a fotógrafa que abdicou de tudo por uma causa. Seu trabalho é um manifesto em defesa de uma civilização ameaçada. Parece ser a sina de quem se mete na complicada tarefa de trabalhar na Amazônia. Indígenas, ribeirinhos, fiscais do Ibama, profissionais de saúde, assistentes sociais, religiosos, jornalistas. A lista é grande, assim como as de riscos e fatalidades. Na última semana, a polícia enfim elucidou os assassinatos de Dom Phillips e Bruno Pereira, repórter e indigenista que, como tantos outros, extrapolavam suas funções. Não viram alternativa.
Em um ano que mal começou e lotado de notícias, quem trouxe à luz o descalabro da situação yanomami foi um site ativista, Sumaúma, baseado em Altamira. O título da reportagem publicada na sexta-feira (20), “Não estamos conseguindo contar os corpos”, é pesado. Os dados também. “Durante o governo do extremista de direita Jair Bolsonaro”, 570 crianças morreram de causas evitáveis. As imagens, feitas por indígenas e profissionais de saúde, são chocantes.
O assunto ganhou tração que há muito não se via. Luiz Inácio Lula da Silva foi para Roraima no dia seguinte, pouco depois de trocar o comandante do Exército. A mídia dos grandes centros acordou junto e embarcou para Boa Vista. Desnutrição, malária, desvio de remédio, inação de militares, garimpo, crime organizado e uma nova discussão jurídica, se é ou não é genocídio. A Folha constatou o absurdo: yanomamis, que não podem mais pescar nos rios contaminados, agora recebem peixe enlatado em fardos jogados no meio da Terra Indígena por aviões da FAB.

Como relatou Sumaúma, capitaneado, entre outros, pela jornalista Eliane Brum, o governo Bolsonaro diminuiu o acompanhamento médico das crianças yanomamis durante o mandato. Pelas estatísticas, menos indivíduos estavam doentes, mas apenas porque um número cada vez menor deles era monitorado. Os marcados de Andujar fazem falta. A situação se agrava há tempos, parece evidente, mas só de vez em quando transborda para o Brasil urbano, rico e branco.
“Eu demorei pra descobrir a cultura do não indígena, que gosta de olhar o papel escrito. Então o único pensamento que eu tive foi de escrever porque, se eu falo, o não indígena não presta atenção. E, se presta, esquece”, declarou Davi Kopenawa à Folha em novembro. O xamã yanomami comentava sobre seu livro, “A Queda do Céu”, mas a frase funciona bem na crise atual. Se eles falam, não prestamos atenção. Se prestamos, logo esquecemos.
A Folha tem um posto de correspondente em Manaus, uma editoria de Ambiente atenta e histórias importantes em seu índice, como as que comprovam o apreço do general Augusto Heleno ao garimpo em áreas demarcadas. É suficiente? Longe disso. Em junho de 2021, uma reportagem de Bruxelas já mostrava que o Brasil era citado na ONU como um caso potencial de genocídio contra seus indígenas.
Em um país que passou a ter um ministério dedicado aos povos originários, é importante a Folha entender a cobertura deles como prioridade. Faltam recursos, assim como sobram dificuldades logísticas e de segurança. Um caminho, já aventado por esta coluna, é intensificar a associação entre veículos de imprensa, somar esforços, dividir o território e as especialidades. A mídia precisa marcar yanomamis, mundurukus e outras comunidades, assim como florestas, rios e o que mais conseguir do bioma amazônico.
Apenas acompanhar o extermínio não é opção.
Comentários