Expedicionários da Saúde se reestruturam para enfrentar o desafio da crise sanitária na Amazônia

 

Lígia Mesquita
SÃO PAULO

MISSÃO COVID-19

  • Organização Expedicionários da Saúde
  • Empreendedores Ricardo Affonso Ferreira, Sérgio Cerqueira Leite, Luís Macedo e Marcia Abdala
  • Site https://eds.org.br

O consumo de chá de casca de madeira Carapanaúba, cipó saracura jambu e um tipo de formiga aumentou neste ano na região conhecida como Cabeça do Cachorro, no noroeste do Amazonas.

As comunidades indígenas que vivem naquela parte da Amazônia, onde o Brasil faz fronteira com a Venezuela e a Colômbia, acreditam que a infusão, tomada contra a gripe e outras doenças, é a maior proteção diante da Covid-19.

Mas os moradores dali sabem que, caso o tratamento natural falhe contra o coronavírus, os infectados com sintomas graves podem recorrer à ajuda da medicina tradicional “do branco” sem precisar se deslocar de barco por horas até um centro urbano.

Desde o primeiro caso de Covid no fim de abril no Alto Rio Negro, que tem cerca de 26 mil indígenas de 23 etnias, 1.993 pessoas foram infectadas e 13 morreram, pelos dados oficiais. Número baixo se comparado com o de terras indígenas com proporção similar de casos da doença —como a do Alto Solimões, com 35 óbitos e 1.997 infectados.

Além da pajelança com infusão de ervas e banhos, os indígenas das 750 comunidades da região contaram com a ONG Expedicionários da Saúde (EDS), que há 18 anos faz atendimento médico no local.
Para que essa população pudesse ter acesso a oxigênio nos casos mais graves, sem precisar se deslocar à cidade e aumentar as chances de contrair o vírus, a entidade instalou 18 enfermarias de campanha, batizadas de UAPIs (Unidades de Atendimento Primário Indígena).

No total, a iniciativa “S.O.S Povos da Floresta – Missão Covid-19” instalou 262 UAPIs em 300 localidades, fornecendo mil concentradores e 182 cilindros de oxigênio, 10 mil kits com medicamentos e suprimentos hospitalares.

A EDS replicou a ação em outros nove estados: Acre, Amapá, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. A ONG também forneceu treinamento sobre Covid-19 à distância para profissionais de saúde dos distritos sanitários indígenas. “Implantamos uma solução em rede, olhando para a Amazônia indígena como um todo”, conta Ricardo Affonso Ferreira, 63, presidente da Expedicionários da Saúde.

Na Amazônia, diz ele, não adianta mandar equipamentos se não ensinar como usá-los. “Tem que mandar de chave de fenda a gerador e ter planos de ação levando em conta as dificuldades de cada local.”

A iniciativa, segundo o ortopedista, mostrou aos médicos que há novas maneiras de compartilhar conhecimento. “Colocamos profissionais de diferentes lugares para trocar informações e foi riquíssimo”, diz. Ele montou a EDS após excursão ao Pico da Neblina, localizado em terra ianomâmi, em 2002.

Na pandemia, o transporte de toda a estrutura foi feito por caminhões, barcos e aviões e contou com voluntários do Exército, da Força Aérea e do Ministério da Saúde. Luis Francisco Macedo, 59, chefe de operações da ONG, coordenou a logística de guerra.

Ao perceber que o poder público ia demorar para agir, era preciso correr contra o relógio. “Já sabíamos o que precisava ser feito e não dava para esperar”, diz ele, que é piloto aposentado. “Se pedisse licença [ao governo] para começar a se mexer, não ia rolar. Preferi pedir desculpas depois.”

A maior dificuldade, segundo Macedo, foi comprar equipamentos, já que a demanda era altíssima. Foram pessoalmente a fornecedores explicar a emergência na Amazônia e conseguiram o essencial.

Ele conta que a tática de fazer primeiro e depois perguntar também foi adotada em relação aos recursos. Enquanto não recebiam respostas para os pedidos de doação, usaram o dinheiro que já havia em caixa para as primeiras compras. “Teve organizações famosas que mal olharam nosso projeto, que pensaram ‘quem são esses quatro caipiras malucos pedindo dinheiro pra ontem?’.” Foram fazendo até entrarem as primeiras grandes doações da Avaaz [maior comunidade mundial de ativistas online] e da Pfizer. Ao final, captaram R$ 7,7 milhões.

Na linha de frente estavam ainda Marcia Abdala e Sérgio de Cerqueira Leite, os outros dois coordenadores da missão. Marcia, 53, diz que o coletivo é o que move a entidade, assim como parcerias e voluntários essenciais para pôr a Missão Covid-19 de pé. “Sozinhos não teríamos conseguido fazer tudo o que fizemos.”
Cerqueira Leite foi o idealizador da primeira ação na pandemia antes das enfermarias em terras indígenas: a construção de um hospital de campanha em Campinas (SP), onde fica a sede da EDS.

Com a expertise em montar estruturas hospitalares na Amazônia para a realização de cirurgias de pequeno e médio porte, eles construíram um hospital de 122 leitos onde 596 pacientes foram internados entre maio e agosto. A entidade havia atuando fora da Amazônia após o terremoto no Haiti em 2010.

Ao mesmo tempo em que o hospital e as enfermarias eram instaladas, a ONG trabalhava em uma terceira frente: a adaptação de máscaras de mergulho para servirem de respiradores reutilizáveis. No total, 1.871 unidades do equipamento foram distribuídas em 64 hospitais em 17 estados.

Para Ferreira, nas crises surgem as oportunidades. A EDS desenvolve novos projetos a partir da experiência na Missão Covid. “Assim como nas guerras, aprenderemos com a pandemia”, diz. “Este momento reforça que solidariedade é questão de sobrevivência.”

MISSÃO COVID-19

  • 74.352 pessoas impactadas
  • R$ 7.434.033,84 em recursos mobilizados
  • R$ 6,3 milhões em equipamentos e insumos doados ao sistema de saúde indígena
  • 1 hospital de campanha com 122 leitos
  • 262 enfermarias de campanha e Unidades de Atenção Primária Indígenas
  • 1.871 máscaras de mergulho adaptadas para servirem de respiradores
  • 10 mil kits hospitalares

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