Rodado na Terra Indígena Jaraguá, ‘Para’í’ lembra Abbas Kiarostami e ‘Totoro’, com entrelaçamento de afeto e sofrimento

Lúcia Monteiro

PARA’Í ★★★★★

  • Onde Nos cinemas
  • Classificação Livre
  • Elenco Monique Ramos, Lucas Augusto, Samara Cristina
  • Produção Brasil, 2018
  • Direção Vinicius Toro

Algumas obras-primas do iraniano Abbas Kiarostami, sobretudo aquelas feitas no início de sua filmografia, quando as crianças estavam muito presentes no roteiro, apresentam uma narrativa que lembra a forma das bonecas russas —uma história puxa outra, que puxa outra, que puxa outra, e assim por diante.

É o caso, por exemplo, de “Onde Fica a Casa do Meu Amigo?”, de 1987, em que um garotinho precisa devolver o caderno para o colega de classe, mas não sabe onde ele mora. O filme acontece na procura pelo endereço do amigo —e atingir o objetivo importa menos do que tudo o que o personagem encontra no percurso.

Cena do filme 'Para'i', dirigido por Vinicius Toro
Cena do filme ‘Para’i’, dirigido por Vinicius Toro – Divulgação

“Para’í”, primeiro longa de ficção de Vinícius Toro, tem uma estrutura parecida. Pará é uma garota de cerca de nove anos que vive na comunidade guarani do Jaraguá, em São Paulo. Na escola onde estuda, de maioria não indígena, é chamada de Mônica. Ali, aprende a ler com a história do João e o pé de feijão.

Um dia, perto de um riacho, ela encontra uma espiga de milho toda colorida. Quando a professora ensina a turma a colocar o feijão no algodão úmido para ver a semente germinar, decide, junto com a amiga Silmara, fazer o mesmo com as sementes do milho especial. Será que vai dar certo?

Começam aí as narrativas emolduradas do filme, ou seja, todas as aventuras que Pará e Silmara vão viver enquanto torcem para que o milho enfim brote. É fascinante acompanhar as descobertas das duas, de peripécia em peripécia.

Primeiro, investigam os limites da própria aldeia, em pesquisas no Google Maps feitas no computador do colégio seguidas de expedições até as proximidades da rodovia dos Bandeirantes.

O que significa milagre? Por que o pai de Pará frequenta a igreja evangélica e a mãe não? Como andar de ônibus sendo uma criança desacompanhada que não tem dinheiro para pagar a passagem? Através das questões que intrigam Pará, alguns dos principais problemas que atingem a Terra Indígena Jaraguá se descortinam.

Comove, por exemplo, a sequência em que a protagonista pergunta por que o pai não ensinou a ela a falar guarani, o que dá ensejo para que ele ensine o nome das árvores que os rodeiam.

São notáveis as contaminações entre documentário e ficção. Percebemos, também, colaborações com roteiristas guaranis, fruto do envolvimento do diretor em oficinas audiovisuais no Jaraguá ao longo de mais de uma década.

O sobrenome do diretor, Toro, e a sequência de dança ritual após a semeadura do milho colorido podem induzir ao paralelo com “Meu Amigo Totoro”, de 1988, de Hayao Miyazaki. São de fato obras que se assemelham no teor de ternura –embora seja difícil imaginar na animação japonesa os dolorosos aprendizados por que passam Pará e Silmara, apresentadas ainda muito novas à violência encontrada na luta dos guarani pela terra.

É, aliás, admirável o desempenho das atrizes-mirins Monique Ramos Ara Poty Mattos, como Pará, e de Samara Cristina Pará Mirim O. Martim, como Silmara, com ações valorizadas pela fotografia, precisa e felizmente sem afetações.

Um filme encantador, desses gostosos de ver com a família toda, a exemplo de “Totoro” e “Onde Fica a Casa de Meu Amigo?”. No caso de uma sessão com crianças, melhor se preparar para uma enxurrada de perguntas na saída. Crianças guaranis crescem dentro de São Paulo? E como conseguem conviver tão de perto com a natureza em uma cidade como a nossa?

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2023/04/parai-olha-com-ternura-para-infancia-violenta-de-guaranis-em-sao-paulo.shtml

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