Val Munduruku, que estrela série ‘O Som do Rio’ com Maria Gadú no YouTube, ouvia a cantora para se acalmar

Gabriela Caseff

SÃO PAULO

É nas redes sociais que a tímida Val Munduruku, 25, desabrocha. Nadando no rio Tapajós, em marcha com a juventude pelo clima ou em fotos românticas com sua parceira, a ativista usa o Instagram para compartilhar a cultura e a luta indígenas. Ainda que isso lhe custe mensagens de ódio.

Entre as fotos publicadas, um pôster com Maria Gadú. É que as duas estrelam a série “O Som do Rio” (Carol Quintanilha, Marinha Farinha Filmes), lançada em junho no canal da cantora no YouTube.

A bordo de uma embarcação, a dupla recebe convidados como Lenine e Thelma Assis para uma imersão na Amazônia, em uma narrativa que chama a atenção para a urgência em frear os impactos socioambientais de atividades como o garimpo ilegal.

mulher indígena com desenhos corporais sorri em ebarcação
A ativista indígena e gestora pública Val Munduruku em gravação para a série ‘O Som do Rio’ – Reprodução/O Som do Rio/YouTube

“Conhecendo e escutando a floresta, buscando inspiração para a criação de uma música, ouvindo histórias, ouvindo os povos”, dizem na introdução. A promessa é escutar a nova música de Maria Gadú, com sons da floresta, no último dos quatro episódios.

Em depoimento à Folha, Val Munduruku conta como se tornou ativista, fala de exposição nas redes sociais, sua orientação sexual e dos momentos em que se emocionou ao gravar “O Som do Rio”.

FILHA DE GUERREIRA

Eu cresci em Jacareacanga, no Alto Tapajós, Pará. Minha mãe se mudou antes de eu nascer. Lamento não ter aprendido a língua do meu povo, é o que mais sinto.

Mesmo morando em contexto urbano, nunca deixei de ter relacionamento com as aldeias, acompanhei de perto, ia para lá nas férias quando todos iam para a cidade. Assim me aproximei da vivência e dos costumes.

Minha mãe criou seis filhos como doméstica. Meu pai não participou da criação. Passamos necessidade, não foi uma vida fácil. Sempre foi ‘ela pela gente’, minha mãe é uma grande guerreira.

Ela nunca pisou em uma sala de aula, mas me incentivou para que fosse alguém na vida, como a gente fala. Sou a primeira da família a fazer faculdade.

Vim para Santarém aos 17 anos estudar gestão pública, com a ideia de trazer conhecimento acadêmico para o povo Munduruku. Sempre fui assistida por programas sociais, como Bolsa Família e Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), então tinha essa ligação com as ciências sociais. Eu me formei em 2020.

JOVEM ATIVISTA

Vivo hoje em Alter do Chão, cidade que cresceu desordenada pelo garimpo ilegal, que atrai muita gente de fora. Minha vida enquanto ativista socioambiental está na junção da vida acadêmica com movimentos sociais de Santarém em defesa do território.

Eu me dei conta que era ativista por volta de 2010. Participei de uma mobilização contra a instalação de hidrelétricas dentro do território Munduruku. Depois votei no plano diretor da cidade, me juntei a organizações engajadas na pauta das mudanças climáticas e ao movimento de mulheres.

As indígenas estão fortalecidas, ocupando outros espaços, sendo vistas como lideranças, coisa que não eram antes. Estão se mobilizando, conhecendo seus direitos.

Mulheres indígenas estão fortalecidas, sendo vistas como lideranças, coisa que não eram antesVal Munduruku

sobre auto-estima nas aldeias

SENTIMENTOS POR OUTRA MULHER

Recebo mensagens de ódio tanto por ser ativista quanto por ser homossexual. As lideranças aconselham a não deixar isso me afetar, então apago comentários ruins.

Foi na universidade que aprendi a lidar com minha orientação sexual. Eu falava de descoberta, mas sabia que era mais aceitação.

Maria Gadú entrou na minha vida antes de saber da minha existência, pois ouvia suas canções para me acalmar nas crises de ansiedade. Shimbalaiê, João de Barro. Fui entendendo que uma mulher poderia ter sentimentos por outra.

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Eu me relaciono com uma indígena do povo Borari. Quem vive dentro do território sabe que os clãs não podem se misturar. Clã vermelho tem que casar com clã vermelho, clã branco tem que casar com clã branco. Mas como cresci dentro do município, isso não interfere.

No povo Munduruku, tem essa coisa mais fechada dos homens. Tem lideranças que me apoiam, tem pessoas que não ligam e com outras não é muito assim. É igual na sociedade.

Eu falava de descoberta, mas sabia que era mais aceitaçãoVal Munduruku

ao se reconhecer homossexual

O SOM DO RIO

Maria Gadú se aproximou do movimento indígena, temos bandeiras em comum. Nós nos encontramos em 2018 no Acampamento Terra Livre, em Brasília. Fizemos uma live juntas.

Surgiu o papo de um projeto que percorreria o Tapajós. Era “O Som do Rio”.

Ajudei a escrever o roteiro do documentário e recebemos Lenine, Vítor diCastro e Thelma Assis para uma imersão na floresta. Visitamos comunidades que mostram um contraponto ao modelo de desenvolvimento que não respeita os modos de vida do território.

Mostramos as consequências da contaminação por mercúrio que o garimpo ilegal deixa. Águas turvas, peixes contaminados.

Um dos momentos marcantes foi quando estivemos na Caverna da Pedra Pintada, com vestígios de 12 mil anos. No primeiro momento, eu só sabia pedir permissão para meus ancestrais que estiveram naquele lugar sagrado.

Depois, ver Gadú e Lenine gravando no igarapé foi especial. No episódio final, sai a música que ela criou na floresta. Cantamos juntas, fiquei emocionada.

DOM, BRUNO E TODAS AS OUTRAS E OUTROS

Lideranças que estão na luta de frente sofrem ameaças diariamente. A morte de Dom e de Bruno não é um caso isolado. Isso vem acontecendo com quem defende a natureza.

Invadem casas, botam fogo, disparam armas de fogo. Aconteceu agora com Maria Leusa Munduruku (coordenadora da Associação das Mulheres Munduruku Wakoborũn). Infelizmente o Governo Federal dá o aval para que esses conflitos aconteçam nos territórios indígenas e quilombolas.

Espero que a série possa furar bolhas, tocar o coração das pessoas. Mostrar que a luta pela mãe terra é uma luta de todos nós.

O SOM DO RIO

  • Elenco Maria Gadú, Val Munduruku, Lenine, Vítor diCastro, Thelma Assis e Felipe Castanhari
  • Produção Maria Farinha Filmes
  • Direção Carol Quintanilha
  • Link: https://www.youtube.com/watch?v=C5eMzUd7t0E&
  • Produtores Maria Gadú, Estela Renner, Luana Lobo, Marcos Nisti e Mariana Oliva
  • Roteiro Flávia Borges e Carol Quintanilha
  • Colaboração de roteiro Val Munduruku, Duda Porto e João Iglesias

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/folha-social-mais/2022/07/recebo-mensagens-de-odio-por-ser-ativista-e-homossexual-diz-indigena.shtml

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