A trajetória de uma pessoa negra nos 20 anos da Lei 10.639/03 e por que dados contra o racismo
Helton Souto Lima
É cientista social, mestre em políticas públicas e cofundador do Instituto DACOR (Dados contra o Racismo)
Como as expectativas, os projetos de vida, as aspirações e a própria existência de uma pessoa negra, nascida no Brasil, em 2003, ou seja, com 20 anos, poderiam ser marcadas positivamente ou não pela existência de políticas e ações voltadas para a equidade racial?
Essa é uma pergunta que nos provoca e precisa nos conectar a uma reflexão profunda sobre os processos de exclusão racial e de que forma podemos combatê-los para criarmos um projeto mais justo de sociedade.
Hoje, é preocupante pensarmos que tal pessoa precisou enfrentar a manifestação do racismo estrutural: escapando da violência, uma vez que pessoas negras têm 2,6 vezes mais chances de serem assassinadas que pessoas não negras, segundo dados do Atlas da Violência, de 2021; driblando os desafios na Educação que reserva à apenas 58,3% dos jovens pretos a possibilidade de concluir o ensino médio e mantém tantos e tantos outros fora da escola: 70,8% das pessoas de 4 a 17 anos nessa situação são negras, segundo dados da PNAD, em 2019; chegando até a universidade enquanto parte dos 38% matriculados no ensino superior (tendo alcançado esse estágio da educação por meio de cotas raciais ou não) e, ainda, depois disso, enfrentando muito mais dificuldades do que uma pessoa branca para acessar, permanecer e ascender no mundo de trabalho, que tem apenas 23% (IBGE, 2019) de pessoas negras em cargos de liderança, e que ainda engatinha em políticas de diversidade e inclusão.
Os últimos 20 anos tiveram marcos nas políticas públicas e leis voltadas para o enfrentamento das desigualdades raciais, não há dúvidas. E isso aconteceu por conta da luta histórica de pessoas, organizações e, sobretudo, dos movimentos negros. São avanços que devem ser, sim, celebrados, mas também discutidos numa perspectiva crítica no que diz respeito à sua efetiva implementação.
Um desses marcos que completa exatamente 20 anos é a Lei 10.639/03, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira na educação básica pública e privada. Cinco anos depois, a Lei 11.645/08 instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura indígena.
Essas são leis que procuraram diminuir o impacto de um currículo atravessado pelo racismo estrutural na permanência, no sucesso escolar e no desenvolvimento emocional e cognitivo de crianças e adolescentes negros, indígenas e quilombolas.
Importante ressaltar que, apesar da importância dessa política pública, infelizmente, ainda não foi possível perceber a sua real implementação na maioria das escolas brasileiras. Pesquisa publicada este ano pelo Geledés —Instituto da Mulher Negra— e pelo Instituto Alana, com dados referentes a 21% das redes municipais de ensino do país, constatou que 71% delas realizam poucas ou nenhuma ação para efetivar as leis acima mencionadas.
Essa pessoa negra nascida em 2003 precisou, então, lidar com os desafios de um país que não se preparou de forma eficaz para enfrentar as desigualdades raciais e, por isso, não a incluiu em seu projeto de sociedade no passado, no presente e no futuro.
E, mesmo que essa pessoa tenha obtido êxito nessa trajetória, seus próximos passos não estão assegurados porque o país parece não estar preparado para lidar com seus desejos, suas necessidades e suas vontades de se realizar como pessoa, estudante, cidadão e profissional de forma digna.
Os números aqui apresentados, mais do que ilustrar, ajudam a traduzir a dimensão dos desafios dessa pessoa e nosso desafio como sociedade. Trazer à tona informações desse tipo é importante para que elas possam ser base para o enfrentamento do racismo.
Quando falamos de dados contra o racismo, uma dimensão é a de buscar aquilo que evidencia a existência do racismo e que precisa fazer parte das mesas de decisão para que políticas efetivas e específicas sejam criadas e implementadas com foco na superação de desigualdades.
Uma outra dimensão importante de ser também levada para as mesas de decisão diz respeito às evidências de boas práticas, exemplos, ações e políticas sistêmicas que, efetivamente, possibilitam combater o racismo.
Construir, levantar, monitorar e disseminar conhecimentos sobre aquilo que se contrapõe à perpetuação e ao aprofundamento das desigualdades são informações que poderão nos dizer e nos ensinar como essa pessoa negra, nascida no Brasil, em 2003, pôde enfrentar esses desafios de existência e de desenvolvimento descritos acima e se orientar na construção de uma trajetória mais repleta de oportunidades que criem frestas, rachem os muros e façam crer que restam, sim, ilusões (e utopias) reais de potência sem que seja necessário se temer pelo futuro.
O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço “Políticas e Justiça” da Folha sugira uma música aos leitores. Neste texto, a escolhida por Helton Souto Lima foi “Extra”, de Gilberto Gil. Na gravação, ao vivo com o Baiana System.
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