Inação do governo frente à crise de Covid que assola povos indígenas deve ser julgada nesta segunda-feira (3)

Thiago Amparo

Alguns, os delicados, preferem evitar as palavras que lhes machucam. Outros, os povos indígenas, dirão que não são as palavras que machucam, mas o extermínio dos seus.

Nesta guerra das palavras travada sobre corpos indígenas —ou seria ineficiência ou seria genocídio— perde-se de vista o que importa de fato: quem o impedirá?

Nesta segunda (3), o Supremo Tribunal Federal (STF) tem a chance de fazer o que o Tribunal Penal Internacional (TPI) não fará: prevenir que a pandemia extermine povos indígenas.

Não fetichizemos cortes internacionais, importantes que sejam. O TPI não seguir com a investigação sobre crimes internacionais contra Bolsonaro diz mais sobre os entraves burocráticos de que o tribunal padece do que porventura diga sobre a lisura das ações do presidente, porque sobre esta nada diz.

Usando metáfora da professora de Harvard Kathryn Sikkink, levar demandas para esfera internacional, ganhando ou não, equivale a jogar um bumerangue esperando que, ao voltar, este ponha fim a violações a direitos, aqui e agora.

Bumerangue está nesta segunda (03) no campo do STF para referendar a cautelar concedida pelo ministro Luís Roberto Barroso, no dia 8 de julho, a favor dos povos indígenas. Ele, em síntese, determinou que o governo federal, em diálogo com povos indígenas, saia da inação. Espera-se que o plenário da corte, ao menos, referende esta ordem.

Diferentemente de países como Hungria que se valeram da pandemia para alargar as prerrogativas do poder executivo, o governo Bolsonaro —como Trump— fez da incompetência sua política de estado.

Esta é a conclusão dos professores David Pozen, da universidade de Columbia, e Kim Scheppele, Princeton, em recente artigo, ao cunhar o termo “executive underreach”: a contrassenso, governos com inclinações autoritárias podem, intencionalmente, preferir a omissão. E numa pandemia, omissão custa vidas.

A diferença entre ineficiência na pandemia e genocídio não está na sensibilidade dos ouvidos. Está na intenção ou não de sujeitar um grupo étnico a condições de vida que tendam à sua destruição, total ou parcial. A propósito, crime contra a humanidade de extermínio sequer exige tal intencionalidade.

Enquanto debatemos do que chamaremos o horror, passa a boiada vetando águadistribuindo cloroquina e incentivando garimpo ilegal. Sem haver quem investigue genocídio —crime também na lei brasileira, aliás— não se deve aceitar como sincero o espanto diante do uso da palavra. Quem não comete genocídio não teme que este seja investigado.

Dada a resistência do governo, requer-se que plenário do STF vá além. Além de diálogo, importante que seja, a pandemia urge reverter invasões de comunidades indígenas. Se assim não for, barreiras sanitárias não passarão de desenhos na areia. As terras indígenas em estado mais críticos, inclusive a Yanomami, são também as mais impactadas por invasões. Deve-se compreender a correlação de fatores aqui.

Invasões e desmatamento impactam resiliência indígena frente à pandemia e, com ela, o direito à saúde destes povos.

“Para contar a história do senhor de escravos nunca faltaram narradores”, disse no século 19 o abolicionista Frederick Douglass.

Enquanto se trava guerra de palavras sob o ar condicionado dos círculos jurídicos, internacionais e jornalísticos, a história dos povos indígenas na pandemia é escrita em sangue. Hoje, cabe ao STF fazer com que isso “seja lá o que isso for” estanque. O governo, por si só ou pelo diálogo, não o fará.​

Thiago Amparo

Advogado, é professor de políticas de diversidade na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos humanos e discriminação.

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