Indígenas na TI Cacau do Tarauacá, no município de Envira (AM), vivem seca extrema e precisam andar longas distâncias para garantir comida – Marcos Kulina/Arquivo Pessoal
Em julho, 92% dos territórios da região estavam em situação de seca; povos relatam longos trajetos para garantir subsistência
Jullie Pereira
InfoAmazonia
Nove em cada dez terras indígenas (TIs) na Amazônia Legal foram atingidas pela seca em julho deste ano. Dos 388 territórios na região, 358 (92%) já enfrentavam o problema, que impacta diretamente a rotina dessas populações.
Esse cenário foi constatado pela InfoAmazonia por meio de uma análise de dados exclusivos obtidos junto ao Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e de entrevistas com indígenas de comunidades afetadas. Em julho do ano passado, 260 TIs foram atingidas, um número 37% menor do que o registrado no mesmo mês de 2024.
O problema também se intensificou. Segundo o Cemaden, em julho do ano passado, apenas uma TI foi classificada como seca extrema. Neste ano, o número subiu para 17.
Somado a isso, 53,6% das TIs (192 no total) foram classificadas como seca severa em julho deste ano, enquanto 41% enfrentam seca fraca ou moderada. Já em 2023, 73,8% dos territórios (192) estavam em seca fraca ou moderada, e apenas 10,3% enfrentavam seca severa (27).
A seca extrema às margens do rio
O Amazonas é o estado da Amazônia Legal com o maior número de terras indígenas em situação de seca (146). Depois, vem o Mato Grosso, com 68, e o Pará, com 55. A TI Cacau do Tarauacá, no município de Envira (AM), a 1.206 km de Manaus, passou de uma situação de normalidade em julho de 2023 para uma seca extrema em julho de 2024.
O povo Kulina vive às margens do rio Tarauacá, afluente do rio Juruá, mas as embarcações já não conseguem mais navegar. Onde antes havia água agora resta apenas lama. Eles tentam usar o que sobrou de um lago para construir um “sangrador”, cavando um caminho mais fundo e estreito no solo para que a água tenha altura suficiente para a passagem dos barcos. Além disso, improvisam pontes com pedaços de madeira, já que é impossível andar sem afundar no chão lamacento.
“É muito difícil ir pra cidade, porque o lago secou muito. Da minha aldeia pra chegar no rio, é 40 minutos a pé”, conta o indígena Marcos Kulina.
Essa locomoção difícil é o principal desafio a ser vencido contra a fome. “Nós temos um poço que fizemos com o nosso dinheiro, juntamos nossos recursos e, por isso, hoje ainda temos água. Mas estamos passando necessidade de alimentação, porque sem o rio falta peixe”, afirma.
A Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam) está fazendo a aquisição de alimentos produzidos nas terras indígenas que ainda não sofrem com a seca extrema. De acordo com a presidente da entidade, Maria Cordeiro, a Mariazinha Baré, isso vai ocorrer por meio de uma ação com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), empresa pública vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. As tratativas estão sendo feitas com apoio do Ministério Público Federal.
Falta de água potável
De acordo com os dados da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), 2.800 aldeias na Amazônia Legal não têm estrutura de abastecimento de água. No Amazonas está o Distrito Especial Indígena (Dsei) Alto Rio Solimões, que apresenta o pior nível de abastecimento de água em todo o país. São 32,5 mil pessoas sem acesso a poço ou caminhão-pipa.
Beto Fernandes Torres, do povo Tikuna, leciona línguas e literatura e mora na TI Tikuna Feijoal, no município de Benjamin Constant, a 1,5 mil km de Manaus. A terra indígena está classificada como seca moderada.
Segundo Torres, o horário das aulas na escola já foi reduzido “porque a merenda não está chegando”. “Para sair da nossa comunidade, tem que pegar uma canoa e passar dois dias ou três dias viajando.”
Mariazinha Baré afirma que as autoridades já poderiam ter iniciado as ações de apoio e prevenção às comunidades antes de a seca chegar. “[O estado deveria] identificar aquelas [comunidades] que mais precisam, estocar alimentos que durem mais tempo, como a farinha e a tapioca”, diz.
A reportagem questionou o Governo do Amazonas, a Funai e o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) para saber quais ações estão sendo feitas para reduzir os danos da seca às populações indígenas da Amazônia Legal, mas não houve resposta até a publicação.
Seca na Amazônia
A descida do nível dos rios é comum nesta época do ano (a estação seca na Amazônia oriental acontece normalmente de julho a outubro), mas a Amazônia enfrentou um déficit de precipitação ainda no primeiro semestre. Isso ocorreu por efeito do El Niño, fenômeno caracterizado pelo aquecimento anormal do oceano Pacífico na linha do Equador, que, em combinação com o aquecimento do oceano Atlântico Norte, inibiu a formação de nuvens.
O pesquisador Renato Senna, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), explica que a tendência é piorar. “A seca já vai encontrar as bacias e os rios em condições de deficiência.”
Apesar da urgência do tema, o governo federal ainda está desenvolvendo um plano nacional de adaptação climática, que incluirá um setor específico para povos indígenas e deverá ser apresentado apenas em 2025.
“É urgente que os doadores, dos comitês, dos governos, entendam o que nós estamos enfrentando. Por incrível que pareça, os povos indígenas que mantêm as florestas é que estão sofrendo mais os impactos dos extremos”, diz Francisca Arara, titular da Secretaria Extraordinária de Povos Indígenas (Sepi) do Acre.
COMO ANALISAMOS A SECA NA AMAZÔNIA?
- Nesta reportagem, analisamos dados do Índice Integrado de Seca (IIS) do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), para as terras indígenas na Amazônia Legal em julho de 2023 e julho de 2024. Os dados foram disponibilizados pelo Cemaden a pedido da InfoAmazonia e os limites dos territórios são fornecidos pela Funai.
- O Índice Integrado de Seca (IIS) consiste na combinação do Índice de Precipitação Padronizada (SPI), a Água Disponível no Solo (ADS) juntamente com o Índice de Suprimento de Água para a Vegetação (VSWI) ou com o Índice de Saúde da Vegetação (VHI), ambos estimados por sensoriamento remoto. O IIS possui as seguintes classes: condição normal (6), seca fraca (5), seca moderada (4), seca severa (3), seca extrema (2) e seca excepcional (1).
- Foi considerado o IIS1, que considera os dados somente de um mês, para o mês de julho de 2023 e 2024.
Esta reportagem foi produzida pela Unidade de Geojornalismo InfoAmazonia, com o apoio do Instituto Serrapilheira, e publicada originalmente neste link.
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