Filme nacional chega agora ao streaming depois de atrasos e percalços da pandemia

SÃO PAULO

Vanessa caminha por uma rua de comércio agitada. Ela para, compra um óculos de sol e, em seguida, se aproxima de uma barraca que vende malas de viagem, ainda incerta sobre o futuro para o qual o item aponta. Apesar de trabalhar num posto de saúde, a personagem mostra certa relutância em abraçar aquela atmosfera urbana, mas também não se sente completamente à vontade em casa, cercada pela mata e falando em tukano, língua indígena do Alto Rio Negro, no Amazonas, com o pai.

É sua eterna indecisão sobre a qual mundo ela aspira pertencer que acaba guiando a trama de “A Febre”, mesmo que Vanessa sirva de coadjuvante para Justino, protagonista vivido por Regis Myrupu. Distante da floresta onde cresceu, o vigilante portuário de etnia desana não sabe muito bem como reagir quando a filha recebe a notícia de que conseguiu uma bolsa para estudar medicina em Brasília. Até que chega a febre do título.

Mas a relevância do distrito federal para o longa não para por aí. Foi no Festival de Brasília que “A Febre” mostrou sua força, ao embolsar cinco prêmios, incluindo o de melhor filme, em 2019. Também foi premiado no Janela Internacional, do Recife, e no Festival do Rio. Em Locarno, na Suíça, conquistou o troféu da crítica e o de melhor ator.

Quando foi a hora de estrear para o grande público, um empecilho: a Covid-19, que atrasou o lançamento e minou a confiança nas salas de cinema quando “A Febre” finalmente pôde chegar nelas, em novembro. No começo deste mês, no entanto, o longa ganhou sobrevida e estreou na Netflix, onde sua diretora, Maya Da-Rin, espera poder alcançar mais gente.

“O filme foi pensado para as telas, e para nós foi triste não ter a exibição da forma como ela foi pensada, em muitos lugares, mas por outro lado nós agora temos a amplitude de uma plataforma de streaming, o que é muito bom e permite que ‘A Febre’ chegue a locais que normalmente não chegaria”, diz ela em conversa por telefone.

Antes da pandemia, ela planejava não apenas investir mais nas telonas com o filme, mas também levá-lo a aldeias indígenas —o que acabou acontecendo de forma remota, em escala menor. Agora, “A Febre” espera trilhar carreira comercial lá fora, com estreia programada nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, na China e no Canadá nos próximos meses, em diferentes formatos.

“A Febre” faz parte de um tipo de cinema nacional que, infelizmente, não alça voo entre o grande público, confessa Da-Rin. Com a Covid-19, então, tudo ficou mais difícil. Dificuldade essa que às vezes parece se sobrepor à que acompanhou o processo de produção do longa, igualmente árduo.

O filme foi gravado no Amazonas, tanto em Manaus quanto em regiões de floresta, completamente afastadas da infraestrutura que se apresenta a quem quer gravar uma obra no eixo Rio-São Paulo. Para fazer “A Febre”, Da-Rin optou por não levar muitos equipamentos à capital amazonense, devido às complicações de acesso. A equipe também foi majoritariamente manauara e truques para saber fazer mais com menos foram indispensáveis —“havia um trabalho de inventividade”, explica.

A cineasta destaca a ajuda que recebeu dos indígenas de seu elenco, que acabaram extrapolando o trabalho de atuação para servir também como mentores. Da-Rin lembra de uma filmagem noturna que comandou numa região de floresta da periferia de Manaus, “duplamente delicada, porque é um local especialmente violento, o que se soma ao fato de estarmos dentro da floresta à noite”.

Durante as gravações, ela ouviu um rugido alto, que amedrontou toda a equipe. Até que a diretora percebeu que seu protagonista, Regis Myrupu, ria. O animal que os aterrorizava nada mais era que um macaco. “Ele sabia até a quantos metros o bicho estava. Eles tinham uma outra relação com a floresta e nos ajudaram a ler os sinais antes de entrarmos nela”, afirma.

As florestas, aliás, têm preenchido as telas brasileiras com frequência nos últimos anos. “A Febre” é só mais um de uma série de filmes centrados em povos indígenas que parecem estar criando um novo subgênero dentro do cinema nacional. “Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos”“Ex-Pajé” e o ainda inédito “A Última Floresta”, selecionado na semana passada para o Festival de Berlim, são alguns exemplos dessa onda.

Da-Rin afirma que a temática não é exclusividade do cinema e que tem aparecido com frequência em outras áreas, como no teatro e na dança. São os frutos de anos e mais anos de políticas que tentaram trazer direitos para grupos marginalizados e legitimar a identidade dos povos indígenas —apesar do baque sofrido na atual gestão bolsonarista, pouco afeita a essa agenda.

“Há hoje uma efervescência cultural entre os indígenas que faz com que os não indígenas passem a ter acesso a um novo mundo, a uma produção com outras epistemologias. Não corresponde à construção da nossa sociedade ocidental”, diz a cineasta, que é carioca e que afirma que a confecção de “A Febre” foi bastante colaborativa. “A gente só tem acesso a isso quando representantes dessas culturas passam a produzir e a compartilhar isso com a gente.”

Agora, Da-Rin vai trocar de extremo do país. Ela aproveita a pandemia para desenvolver um longa de ficção ambientado numa fazenda de soja no sul. O projeto ainda está em fase embrionária, mas ela espera poder levá-lo às telas —de preferências às grandes, do cinema— em breve.

A FEBRE

  • Onde Disponível na Netflix
  • Classificação 10 anos
  • Elenco Regis Myrupu, Rosa Peixoto e Kaisaro Jussara Brito
  • Produção Brasil/França/Alemanha, 2019
  • Direção Maya Da-Rin

 

 

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/02/a-febre-entrou-na-floresta-e-driblou-apuros-para-falar-sobre-os-povos-indigenas.shtml

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