Documentário de Luiz Bolognesi escrito com Davi Kopenawa estreia no festival alemão e chega ao Brasil neste ano
O diretor Luiz Bolognesi capta um mundo que parece em vias de desaparecer por completo no filme “Ex-Pajé”, de 2018. Nele, assistimos à liderança indígena Perpera sendo porteiro de uma igreja onde parte de seu povo pater suruí se apresenta num coral, em português, para um pastor.
É o evento oposto do retratado no novo documentário do cineasta, “A Última Floresta”, que estreia no Festival de Berlim nesta quarta-feira e deve chegar ao Brasil no segundo semestre. No longa, vemos Davi Kopenawa, protagonista que também assina o roteiro do longa e é coautor do livro “A Queda do Céu”, se empenhando para manter as tradições e saúde do povo ianomâmi em sua comunidade, que é impactada pelo garimpo e está em território demarcado.
“Combinamos de fazer esse filme para mostrar a realidade do povo ianomâmi”, diz Kopenawa, que afirma ser importante essas histórias chegarem ao “povo da cidade”. “Nasci, cresci e fiz esse meu pensamento para sair com essa luta de ‘A Queda do Céu’ e do cinema.”
Além de acompanhar o xamã e outros ianomâmis da comunidade, o documentário mostra indígenas encenando seus mitos fundadores, como a dos irmãos Omama e Yoasi.
“Ao construir o roteiro, a gente percebeu que filmaríamos sonhos e mitos”, conta Bolognesi, sobre a construção do documentário. “Para os povos indígenas, de maneira geral, o universo dos sonhos e a realidade não têm a dicotomia que têm para nós. Muitas coisas que eles sonham a noite se reproduzem de dia.”
O filme foi gravado na língua nativa e poucas palavras em português aparecem no filme. Os poucos termos que saltam na tela em língua portuguesa, aliás, são um bom parâmetro do impacto do “povo da cidade” na região —pólvora, espoleta, tuberculose e mercadoria são algumas das exceções.
Davi Kopenawa também fala na nossa língua ao exigir que garimpeiros saiam de uma parte de seu território numa forte cena do documentário, quando ele é acompanhado por ianomâmis cobertos com a tinta preta de jenipapo.
“Tínhamos só três ou quatro pessoas que falavam português ali. Eu tinha dois jovens que me acompanhavam na filmagem e traduziam”, diz o cineasta. Ele afirma que só foi ter contato com tudo que estava sendo dito para o seu filme quando o material bruto foi traduzido por um ianomâmi e duas antropólogas.
O diálogo entre um homem branco e a liderança indígena para fazer com que essas histórias cheguem à cidade é uma dinâmica que também aparece em a “A Queda do Céu”, que Kopenawa assina com o francês Bruce Albert.
Ele conta que foram áudios gravados pelo antropólogo com as histórias contadas pelo ianomâmi que deram origem ao livro, que foi publicado em 2015 e é narrado pelo ponto de vista de Kopenawa.
“O povo da cidade, os estudantes começam a ler. Eles começam a conhecer o nome do povo ianomâmi. É assim que nós criamos e escrevemos a história do povo ianomâmi. Eu quis mostrar a minha sabeboria para o povo da cidade”, conta Kopenawa.
Luiz Bolognesi diz que teve a ideia de fazer “A Última Floresta” ainda nas gravações de “Ex-Pajé”, com a intenção de registrar a liderança de uma resistência indígena no Brasil. “Também há uma vitória da resistência dos xamãs em muitos lugares, e eu escolhi os ianomâmis.”
Desde que o filme foi gravado, em junho de 2019, a movimentação de garimpeiros aumentou na região, afirma Bolognesi. Os próprios ianomâmis têm denunciado o aumento de invasores no território enquanto o presidente Jair Bolsonaro promete legalizar o garimpo.
A comunidade também passou a lidar também com o coronavírus —mais uma epidemia, que eles chamam de xawara, levada pelos brancos ao território indígena.
Hoje com 66 anos, Kopenawa lembra que casos de gripe, tuberculose e sarampo se tornaram recorrentes em sua comunidade, que tem hoje cerca de 250 pessoas segundo o xamã, quando ele era pequeno.
“Perdi as minhas crianças, as minhas irmãs, meus irmãos. Perdi metade do meu povo ianomâmi naquele tempo. Por isso eu entrei na briga, na luta pra defender o povo ianomâmi que sobrou”, conta.
O novo documentário do cineasta se soma a uma série de filmes centrados em povos indígenas feitos nos últimos anos. Além do seu filme de 2018, que entrará no catálogo da Netflix, há também os títulos “A Febre”, de Maya Da-Rin, “Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos”, de Renée Nader Messora e João Salaviza, e “Piripkura”, de Bruno Jorge, Mariana Oliva e Renata Terra.
“Do ponto de vista do cinema, que está buscando histórias originais e novas, as narrativas trazem uma abordagem e uma linguagem que têm um frescor que interessa”, afirma Bolognesi. Segundo o cineasta, a onda de filmes que retratam populações nativas no Brasil deve ser seguida ainda por um segundo movimento –a de filmes indígenas feitos pelos próprios indígenas.
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