A estátua indígena é erguida com esforço por um homem negro e um homem branco. O pajé de fibra de vidro usa peruca e tem o rosto pintado. A performance aconteceu em setembro no Parque Cidade da Criança, em São Bernardo do Campo (SP), em espaço fechado ao público.

“Eu pulava o muro para brincar aqui”, diz o roteirista e diretor Newton Cannito, 47, o homem branco em cena.

Filho de pai operário da indústria automobilística, preferia o parque aos carrinhos de brinquedo dos amigos. Naquela época, anos 1980, a área amazônica ainda estava em funcionamento na Cidade da Criança.

“Esse foi o primeiro índio que reformei”, diz Lourenço José dos Anjos, 57, funcionário do parque que ajudou a restaurar a estátua do pajé. O homem negro em cena. “Eu digo que sou cirurgião. Ele estava sem perna, sem cabeça, desbotado. Ficou bonito, né?”

ritual com a estátua consagra o retorno do pajé às suas terras, mais precisamente uma ilhota rodeada por um rio seco e uma canoa enguiçada –alusão a uma Amazônia abandonada.

A cena faz parte do filme “Curumim Pajé”, que será lançado em dezembro com um livro autobiográfico e é também um episódio extra da série de televisão “Utopia Brasil”, prevista para 2022.

Estátuas indígenas e movimento de artistas buscam resgatar Brasil tropicalista
Estátuas indígenas e movimento de artistas buscam resgatar Brasil tropicalista

O enredo resgata a infância de Newton Cannito e propõe a construção de uma identidade nacional. “É sobre como a ética tropical do brasileiro pode salvar o mundo. Qual é nosso sonho comum?”

Há algum tempo, o diretor lidera um movimento estético para recuperar valores do tropicalismo, que incorporou o imaginário estrangeiro e o modernismo brasileiro dos anos 1920.

“Estamos aprisionados em um debate intelectual fraco, importando ideias”, afirma Cannito, em uma crítica tanto à atual polarização política quanto às discussões de movimentos à esquerda e à direita.

“Bem e mal são coisas da estética puritana. Nós somos paradoxais, temos ginga e precisamos fazer ativismo com humor, estar uma oitava acima do debate.”

Criador das séries “9mm: São Paulo” (2008) e “Unidade Básica” (2016) e do filme “Magal e os Formigas” (2016), Newton Cannito foi secretário do Audiovisual no Ministério da Cultura (2010-2012), roteirizou a vida de Silvio Santos para o cinema e dá curso de terapia do humor.

Para propor um sonho comum que possa salvar a todos, ele aposta na classe artística. “A revolução começa na estética, depois vai para a política”, afirma. “Os artistas vão inventar, acertar o tom e irradiar para o mundo.”

A semente do Movimento Utopia Brasil foi plantada em “Deus É Humor”, livro que reúne fábulas bem-humoradas sobre a criação, lançado por Cannito em 2012.

Cinco anos depois, se tornou espetáculo, espécie de stand up interativo para confissão de pecados, apresentado na rua da Consolação. À época, ele afirmou que o humor é “princípio da democracia, de conseguir ver do alto, de relativizar, entrar em todas as vozes e pontos de vistas e estar tranquilo com isso.”

Fé com humor
Fé com humor

Há dois anos, um grupo de estudos formado por pelo menos 20 pessoas —a maioria artistas— se encontra pelo Zoom. Segundo ele, o movimento tem base lúdica e tropicaliza o estrangeiro.

Daí a necessidade de começar resgatando uma identidade coletiva a partir dos povos indígenas. “Não é uma utopia para acabar com tudo, é uma nova identidade brasileira para inspirar o mundo”, afirma.

Inspirar e, se possível, tirar proveito disso, combinando utopia com economia. “Há 4.000 anos, meia dúzia de pessoas no meio do deserto escreveram histórias que influenciaram toda a cultura ocidental. Os americanos também fazem isso. Agora é hora do Brasil, e se a gente acertar na estética, vamos reverter em economia criativa.”

Ao final da performance, sob garoa, uma segunda estátua é colocada ao lado do pajé. O curumim branco de olhos azuis é o próprio Newton Cannito. “Ele simboliza a vontade do homem branco em ser aprendiz de pajé.”

A área de 6.300 m² em que ficam as novas estátuas deve reabrir em 2022, segundo estimativa da Prefeitura de São Bernardo do Campo.

“A administração realiza, neste momento, processo de concessão comum do Parque Cidade da Criança, que inclui, entre as atribuições do novo concessionário, a revitalização da área amazônica”, diz a prefeitura em nota.

Parque Cidade da Criança, em São Bernardo do Campo
Parque Cidade da Criança, em São Bernardo do Campo

 

 

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/empreendedorsocial/2021/10/ala-fechada-da-cidade-da-crianca-inspira-movimento-de-resgate-da-identidade-nacional.shtml

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