Pouco antes das eleições de 2018 pipocaram, em várias cidades brasileiras, exposições que tomavam a provocação religiosa, a sexualidade ou a nudez como tema. Causaram escândalos. Houve manifestações contra e até invasão de museu, liderada pelo neomoralista e futuro deputado federal Alexandre Frota.

Depois das eleições, pouco ocorreu nesse sentido, ou muito pouco. Um manto de candura parece recobrir hoje as artes. Museus e galerias tiram nota 10 de bom comportamento. Assimilaram a autocensura. As artes atuais brasileiras pouco se interrogam ou se inspiram no caos que vivemos.

Veja imagens da 34ª Bienal de São Paulo feitas pelo fotógrafo Tuca Vieira
Veja imagens da 34ª Bienal de São Paulo feitas pelo fotógrafo Tuca Vieira

Bienal de Arte de São Paulo deste ano, que termina em poucos dias, mostra um clima bem morno, parecendo o de um convento de freiras. Não tem coerência, nem intenção crítica forte, nenhum impacto interrogador ou revelador, efeito que deveria ser o principal objetivo das bienais.

Isso não quer dizer que não valha a pena visitá-la. O percurso não estimula, em meio a muita insignificância, muita incoerência, mas como a Bienal, por definição, reúne um número elevado de obras e de artistas, há sempre algumas pepitas que brilham.

Seu ponto mais positivo foi a presença das artes indígenas, embora dissolvidas e atenuadas numa trama geral irregular e obscura. Jaider Esbell, artista macuxi, ativista da cultura indígena, cuja morte, há poucas semanas, foi de um impacto trágico para as artes brasileiras, expôs a força de suas obras.

As telas de Jaider Esbell se constroem numa intensidade muito delicada, operando entre a sensibilidade requintada das cores —com algo das finuras decadentistas—, e sua organização em formas sugestivas de um mundo onírico. Essa delicadeza não impede a expressão de vida e de energia.

A entrega da Bienal nas mãos de um curador ocorreu em 1981. Antes, o princípio era que deveria expor um elenco de obras internacionais, dando a temperatura do que ocorria no mundo. Depois, encaixou-se em critérios estreitos, temáticos, conceituais. Tenho a impressão de que deu menos certo.

O pavilhão da Bienal, concebido por Niemeyer, é admirável. Tem uma beleza interior que flui como um percurso. Mas a barulheira interna, produzida pela refrigeração, exaspera. Como se concentrar diante de um minúsculo Morandi ou das silenciosas florestas de Segall com aquele rumor exasperante?

Conheça a obra do artista indígena Jaider Esbell
Conheça a obra do artista indígena Jaider Esbell

François Pinault, multimilionário e colecionador de arte contemporânea, tinha um lugar sublime para expor suas obras: o Palazzo Grassi e a Punta della Dogana, em Veneza. Agora, fez reformar a antiga Bolsa de Comércio de Paris e a tornou um centro de exposições, inaugurado neste ano.

A Bolsa de Comércio de Paris é uma joia, um edifício circular que tomou sua feição no final do século 19. Tem uma grande cúpula de vidro, o que proporciona excelente iluminação. Ela repousa sobre um círculo decorado por pintores “acadêmicos” daquela época, como Luminais ou Clairin.

É curioso como essa pintura não “moderna” se harmoniza com a arte de hoje, que Pinault expõe ali. Rica de signos, de efeitos narrativos, ela solicita menos a pura contemplação que a leitura. As intervenções feitas no edifício pelo grande arquiteto Tadao Ando põem em valor essas pinturas. A luz é onipresente.

Para inaugurar a Bolsa de Comércio como sala de exposições, Pinault preferiu escolher obras com imagens expressivas, em pintura, fotografia e escultura. De sua coleção —entre 10 e 15 mil obras—, afastou as abstratas, conceituais, minimalistas. É uma aposta no humano, nas formas materiais incarnadas.

Sob a rotunda, um conjunto de esculturas de Udo Fischer. São ceras que reproduzem, em tamanho natural, diversos tipos de cadeiras e personagens. No centro, a réplica idêntica, que ele apresentara em Veneza (2011), do enorme “Rapto da Sabina” de Giambologna (1582 —o original está em Florença).

Essas esculturas são, na realidade, imensas velas. Têm mechas internas e são derretidas, aos poucos, pelo fogo. Um mundo em trompe-l’oeil que se desfaz. Giambologna foi um escultor máximo do maneirismo florentino. O decadentismo escorrido de Udo Fischer nos leva a um neo-hipermaneirismo.

Entre os artistas expostos na Bolsa do Comércio de Paris, está Antonio Obá, brasileiro, afrodescendente. Ele sobressai em meio a uma rude concorrência. Sua tela “Sesta”, de 2019, de tanto ser reproduzida na mídia, tornou-se uma espécie de símbolo da exposição.

Sete obras de Antonio Obá estão agora no centro Pinault. “Stranger Fruits – Genealogia”, de 2020 dispõe personagens num ambiente pacífico à primeira vista. Pouco a pouco, infiltra-se em nosso olhar uma poesia inquieta. É um surrealismo que não se proclama tal e que emana gradativo.

Antonio Obá
Antonio Obá

Basta ver a blusa branca da mulher, em “Stranger Fruits”, para perceber que Obá possui a qualidade pictórica dos grandes mestres. A delicada execução de suas telas e o domínio absoluto das intenções servem a um imaginário enigmático que se alimenta de suas raízes africanas.

Em 2017, Obá fez uma performance, ralando uma imagem de N. S. Aparecida, e jogando o pó branco sobre seu corpo nu. Recebeu uma violenta onda de ataques e ameaças. Foi também, em 2018, um dos artistas censurados na mostra Queermuseu, em Porto Alegre. Velhos tempos.

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jorge-coli/2021/12/arte-indigena-e-ponto-alto-de-bienal-morna-e-sem-coerencia.shtml

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