Livro de Rafael Freitas da Silva traz panorama do país a partir de indígena decisivo para a fundação do Rio de Janeiro
Os primórdios da história do Brasil têm suas nuances de verdades e lendas, ainda mais quando se trata de narrar fatos sobre os povos originários e dos africanos trazidos para cá. Ambos, como sabemos, à época, foram trucidados e escravizados pelo colonizador europeu, sejam eles portugueses ou franceses.
Eu sou um grande interessado —e tenho demonstrado por meio desta coluna— pela história do Brasil, sobretudo no que ela agrega de narrativas e aventuras. Não poucas vezes, cito a carta do descobrimento, de Pero Vaz Caminha, para falar de um dos primeiros documentos sobre esse nosso nascente país, ou de personagens como Henrique Dias, negro pernambucano, considerado herói brasileiro por sua participação na guerra que expulsou os holandeses, nos idos do século 17.
Um livro, no entanto, aguçou ainda mais a minha atenção exatamente por sua carga documental e histórica. Trata-se de “Arariboia, Uma Biografia”, que traz como subtítulo “O Indígena que Mudou a História do Brasil”, escrito por Rafael Freitas da Silva, jornalista tarimbado em aventuras esportivas e copas do mundo, publicado agora pela editora Bazar do Tempo.
Com seu “Arariboia”, Rafael Freitas da Silva traça um perfil de um indígena guerrilheiro, que teve participação decisiva e que possibilitou que Rio de Janeiro fosse fundado. Ele é patrono também de Niterói —hoje as duas cidades mais importantes do estado fluminense.
A biografia também derruba uma série de inconsistências em relação à etimologia do nome de Arariboia — também conhecido pelo nome cristão de Martim Afonso de Sousa. Esta parte do livro, descrita detalhadamente logo no primeiro capítulo, nos estimula a seguir em frente na sua leitura.
Mais adiante, esta ideia de uma obra referencial vai ganhando corpo com as indicações de fontes primárias compulsadas pelo pesquisador: do padre José de Anchieta a frei Vicente de Salvador, passando por Fernão Cardim e Pero Rodriguez, único a descrever o rito de morte do “valoroso índio”. Aí encontramos também menções de matas, gravuras e cartas —documentos originais do século do descobrimento.
Além do pormenor descritivo e das muitas façanhas da saga indígena na baía de Guanabara, o livro de Rafael Freitas da Silva também apresenta um nítido panorama do Brasil, sobretudo do nascimento de cidades como Rio de Janeiro e Vitória, no Espírito Santo, que nos serve de atualização do contexto de um país que se firmou pelo massacre e, ao mesmo tempo, pela ocupação sangrenta de terras e territórios indígenas.
Neste aspecto, a obra transforma a vida de Arariboia na ponte de interpretação da formação de um Brasil ainda pouco conhecido nos bancos escolares. A ideia primária de um país “descoberto” pelos portugueses —como se aqui fosse um deserto ou “terra de ninguém”— é descontextualizada com a leitura desse trabalho exemplar de verdadeira pesquisa arqueológica.
Em síntese, “Arariboia, Uma Biografia” é um trabalho de muitos méritos e, acima de tudo, uma valiosa contribuição para se compreender melhor a nossa história. Através de leituras minuciosas, levantamentos de dados até então desconexos com o real acontecimento dos fatos históricos —um esboço único e bem detalhado da vida e da obra do maior líder indígena do passado, amado e ao mesmo tempo odiado por estudiosos e historiadores, e mais ainda, controvertido— Rafael Freitas da Silva pavimenta um caminho a ser seguido com mais segurança e exatidão, para quem pretende se pautar por esta seara de pesquisa.
O Rio de Janeiro de hoje, conforme é apresentado por Rafael Freitas da Silva, ainda tem muito a ver com o deixado por Arariboia, morto de velhice —não afogado, como belamente desconstrói o biógrafo— em 1589, perto dos 70 anos, depois de muitas bélicas escaramuças e de “cansadas as pernas” de servi ao rei de Portugal.
Como bem assinala Alberto Mussa na primeira orelha do livro: “Se ainda é necessário cultuar heróis, Arariboia tem de ser um deles”. Já Luiz Antônio Simas, na outra banda da orelha, complementa que Arariboia “subverte o senso comum”, por ser um “personagem plural, astuto negociador e indomável guerreiro, soldado de Cristo que ostenta roupa presentada por dom Sebastião e majestoso cocar de penas”.
Ou seja, o Arariboia de Rafael Freitas da Silva foi transformado num biografado apaixonante, como de fato é e sempre foi.
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