Arquiteto monta redes de dormir em sala vazia no edifício Mirante do Vale em obra que lembra herança indígena
Numa tarde nublada, quem olha pela janela de um apartamento num dos últimos andares do prédio mais alto de São Paulo vê nuvens carregadas engolirem os topos dos edifícios ao longe.
Com os vidros abertos, é possível sentir o barulho de carros da metrópole invadindo com força o 43º andar do edifício Mirante do Vale, aos pés do vale do Anhangabaú.
É ali, a quase 170 metros do solo, que visitantes têm passado a noite em redes de dormir, de graça, “tendo o prédio do Banespa como luminária de cabeceira”, diz Charly Andral, produtor cultural que comprou o espaço de 70 metros quadrados para receber instalações de arte e eventos.
Até meados de fevereiro, o lugar abriga a intervenção “Três Paus Três Redes o Fogo”, de Thiago Benucci, arquiteto e professor da Escola da Cidade. É uma estrutura simples, composta por três redes
penduradas em hastes de metal vermelhas, montada no formato de um triângulo.
A iluminação foi totalmente removida, para que o quarto receba só a luz da cidade, e o banheiro —coletivo e sem chuveiro— fica no corredor, fora do apartamento. As redes se equilibram soltas no vácuo.
Benucci propõe aos visitantes noturnos “encararem o vazio deste espaço, criar as mínimas condições para que se possa morar aqui temporariamente, tal como num acampamento, no qual a leveza, a agilidade e a simplicidade são bem-vindas”, ele afirma.
Sua intervenção tensiona a leveza de determinadas formas de habitar com o peso e a dureza “catastróficas” do morar contemporâneo, acrescenta, “e para isso é só olhar para fora”, diz, enquanto aponta para os prédios de concreto.
A forma triangular com redes e uma fogueira no meio é o coração do morar ianomâmi, em torno do qual se cria um centro de sociabilidade, conta Benucci. A estrutura também pode ser montada de imediato no meio da floresta, num acampamento de caça, por exemplo, com as redes presas em três paus cobertos por palhas ou por lona.
Durante a pandemia, os ianomâmis se isolaram no mato, se afastando ainda mais dos brancos para evitar o contágio, afirma o arquiteto, e a estrutura com as redes aparece novamente neste contexto.
Peça entre mobiliário e escultura vinda dos povos indígenas da América Latina, a rede de dormir ganhou destaque em seu diálogo com as artes plásticas numa mostra há dois anos no Centro Cultural Banco do Brasil, “Vaivém”.
No catálogo, a exposição chamou a atenção, por exemplo, para os trabalhos de Hélio Oiticica —nos anos 1970, o artista carioca explorou o erotismo associado às redes ao retratar jovens rapazes relaxando nelas na série “Neyrótika”. Ele também as usou nas “Cosmococas”, ambientes hoje montados no Inhotim.
Já no meio da década anterior, tendo como mote a ideia do descanso, o arquiteto e urbanista Lúcio Costa pendurou 14 redes cercadas por painéis com imagens de paisagens do Brasil no pavilhão do Brasil na Trienal de Milão, numa instalação que convidava os visitantes a parar para relaxar.
Mesmo associada a um certo ócio de luxo, por aparecer em varandas de grandes apartamentos, a rede no contexto indígena é multifuncional, lembra Raphael Fonseca, organizador da exposição “Vaivém”. Ela serve para sentar, dormir, comer, transar, conversar e não fazer nada.
Também foi empregada pelos Estados Unidos para difundir mundo afora a imagem do brasileiro preguiçoso, com o personagem Zé Carioca, retratado deitado na rede na capa de dezenas de histórias em quadrinhos, afirma Fonseca.
Em paralelo, a rede se tornou um dos principais símbolos do artesanato do Nordeste, centro redeiro do país.
“Três Paus Três Redes o Fogo” toca ainda na questão dos usos do Mirante do Vale, um dos principais projetos dos engenheiros Aron Kogan e Waldomiro Zarzur, inaugurado em 1966. De acordo com o site do edifício, seu fim é comercial, mas é possível encontrar online um apartamento para estadas curtas por R$ 190 a noite, além de opções para aluguel convencional.
Com a instalação, Benucci procurou estabelecer também um diálogo com a construção civil, já que as hastes de metal são escoras usadas como apoio para lajes de concreto.
Seu acampamento urbano leva os visitantes a verem de frente uma “cidade monstruosa”, afirma o arquiteto, o que é diferente de uma floresta, “que também tem o seu lado assustador e monstruoso”.
A REDE NA ARTE E NA ARQUITETURA
- No pavilhão do Brasil na Trienal de Milão de 1964, o arquiteto e urbanista Lucio Costa instalou 14 redes de dormir na obra ‘Riposatevi’, estimulando o descanso dos visitantes num estande delimitado por imagens de paisagens do Brasil
- Cerca de dez anos depois, Hélio Oiticica convidou o público a experimentar os vídeos da série “Cosmococas”, de 1973, deitado em redes
- O artista plástico carioca também as associou ao erotismo, no trabalho ‘Neyrótika’, de 1972, uma série de slides com jovens rapazes lendo ou relaxando em redes vermelhas
- Tunga usava a rede de balanço como um lugar para trabalhar e pensar, segundo a psicanalista Tania Rivera; o artista pernambucano também usou redes pequenas para segurar caveiras na obra ‘Berço com Crânios’, de 2011
- Nos últimos anos, o coletivo Opavivará! pôs em vários museus do mundo oito redes coloridas lado a lado para estranhos se deitarem e interagirem, na instalação ‘Rede Social’
- Artista da etnia makuxi, Jaider Esbell usa a rede em seu trabalho como forma de representar a resistência indígena, a exemplo da instalação ‘A Capitania Conta a Nossa História’, de 2019, feita com uma rede de couro bovino
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