Autor lamenta o desaparecimento de uma direita e de um centrão capazes de moldar os fundamentos da política indigenista

BRASÍLIA

Alguém consegue imaginar, no Brasil atual, um importante oficial das Forças Armadas defender o direito dos índios à terra como cláusula pétrea da Constituição e assinar a demarcação de 9,4 milhões de hectares para indígenas?

Ou as principais organizações ruralistas do país ajudarem a organizar um encontro entre líderes indígenas e produtores rurais numa cidade do interior de Mato Grosso?

Ou um ministro da Justiça nomear alguém denunciado como “trotskista” de um partido adversário do governo e contra as pressões da base parlamentar?

Hoje surreais, cenas como essas se passaram no Brasil e não faz muito tempo. Lembrá-las ou conhecê-las é o que torna atraente o curto porém instigante livro de memórias de um dos mais importantes indigenistas em atividade no país, Márcio Santilli, 64.


O indigenista Márcio Santilli, do Instituto Socioambiental, no debate promovido pela Folha de S.Paulo sobre o custo da devastação na Amazônia, no auditório da Folha – Bruno Miranda/Folhapress – 25.nov.2005

O ex-presidente da Funai foi deputado federal pelo então PMDB e é um dos fundadores da organização não governamental ISA (Instituto Socioambiental).

Em “Subvertendo a gramática e outras crônicas socioambientais” (ed. ISA, 120 págs.), Santilli lamenta o desaparecimento de uma direita e de um “centrão” parlamentar dos anos de 1980 1990 que conseguiam colocar de lado divergências ideológicas na hora de moldar os fundamentos da própria política indigenista hoje atacada pelo bolsonarismo.

É como visitar as ruínas de um país que não existe mais.

Por Santilli ficamos sabendo que um dos conspiradores do golpe militar de 1964, o coronel e ex-ministro Jarbas Passarinho (1920-2016), foi o mesmo que inventou a expressão “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”, inserida na Constituição de 1988.

A formulação foi um achado porque permitiu “uma leitura antropológica, ‘conforme a tradição’, e outra cronológica, ‘por tempo suficiente para serem tradicionais’”.

Em 1976, Passarinho havia anunciado a cassação do mandato do próprio pai de Santilli, que fora deputado de 1967 a 1983 (a cassação acabou não se cumprindo), mas isso não impediu que, finda a ditadura, o então deputado à esquerda no PMDB e o oficial golpista iniciassem uma conversa frutífera, embora “longa e dura”, acerca de um futuro para os índios durante a Constituinte que redundaria na Carta de 1988.

Certo dia, Passarinho disse ao deputado que ouvia de seus amigos que o grupo de Santilli “conspira contra a soberania nacional”. Santilli respondeu, segundo ele, que “interessa ao país superar o passado histórico na relação com os índios e este é o momento”.

Conforme o indigenista, Passarinho concordou. Era um país com espaços para concordâncias mesmo entre os mais diferentes.

O coronel não foi o único expoente da direita a defender, ainda que tardiamente, interesses indígenas.

Um presidente eleito com o apoio declarado da direta, Fernando Collor (1990-1992) foi o campeão em número de decretos de homologação de terras indígenas.

E um de seus maiores aliados, o deputado federal e ex-ministro Alceni Guerra (PFL-PR), 74, foi “o autor do primeiro relatório sobre os direitos indígenas e de outras minorias na Constituinte, apoiado por gentes de posições tão diversas como as das deputadas Sandra Cavalcanti (PFL-RJ) e Benedita da Silva (PT-RJ)”.

A comparação com o Brasil atual —cujo presidente, Jair Bolsonaro (RJ), declarou várias vezes que não demarcará mais nenhum centímetro de terra indígena— é inevitável. Santilli a enfrenta, embora não seja a proposta do livro.

“Os arautos atuais da direita, que se dedicam a destruir o texto constitucional sobre direitos indígenas, precisam aprender que ele emanou mais de seu campo ideológico do que da esquerda, inclusive a previsão da nulidade de títulos de propriedade incidentes sobre os territórios indígenas. Um projeto de país, mesmo de direita, supõe a coexistência, o que o patrimonialismo corporativista prefere não entender”, escreve Santilli.

Para o indigenista, as ideias de Bolsonaro sobre a Amazônia e os indígenas revelam “que a direita também perdeu a memória e degenerou-se ideologicamente nos últimos anos”.

“Ele [Bolsonaro] não perderia nada se tivesse a humildade de se aproximar da sabedoria do outro e resgatar a memória da sua própria vertente ideológica, o que eu também recomendo aos demais 49 tons da direita.”

Dividido em 18 capítulos, o livro é formado por episódios pouco conhecidos que o autor presenciou ou protagonizou nos últimos 40 anos, incluindo pelo menos um desabonador sobre indígenas e servidores da Funai, órgão que ele presidiu de 1995 a 1996, durante o governo de FHC (1995-2002).

Santilli disse que investigou e descobriu a motivação do que chamou de “xavantadas maçônicas”. Todo presidente da Funai, ao tomar posse no cargo, era pressionado em seu gabinete em Brasília por caciques xavantes que buscavam especialmente picapes novas.

O próprio Santilli foi arrastado para fora do gabinete, durante um protesto. Segundo ele, a razão era nada republicana: as pressões da “burocracia corrupta” da Funai, que procurava tirar proveito de negócios a partir de empresas de Goiás e com envolvimento da maçonaria. A realidade, quando vista de perto, é bem mais multifacetada e surpreendente do que o discurso divisivo do “nós contra eles”.

SUBVERTENDO A GRAMÁTICA E OUTRAS CRÔNICAS SOCIOAMBIENTAIS

 

 

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/01/em-livro-indigenista-ve-uma-direita-que-perdeu-a-memoria-e-se-degenerou.shtml

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