Alexandre Apolinário, 38, coordenador de um grupo de monitoramento da Terra Indígena Boqueirão, em Roraima, observa embarcação com garimpeiros passar pelo rio Uraricoera – Lalo de Almeida/Folhapress
Vinicius SassineLalo de Almeida
ALTO ALEGRE (RR)
Ostensiva e sem limites ao longo dos últimos anos, a presença de 20 mil garimpeiros na Terra Indígena Yanomami alterou a realidade até mesmo em outros territórios tradicionais, que também dependem de rios como o Uraricoera para a subsistência. O garimpo reverbera para além dos yanomamis e é o responsável por divergências e doenças na terra de macuxis e wapichanas.
Roraima é o estado mais indígena do Brasil, em termos proporcionais. Os dados do Censo de 2010, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), apontam que só essa unidade da Federação tinha naquele ano quase 50 mil indígenas, ou 11% da população local. Nela, estão 33 terras indígenas, segundo levantamento do ISA (Instituto Socioambiental).
A terra yanomami é a maior do Brasil. Tem difícil acesso (só por ar ou por água), uma parte está já na fronteira com a Venezuela e os indígenas são de recente contato, havendo incidência de grupos isolados no território.
Terras indígenas próximas do barrento rio Uraricoera sofrem efeitos da exploração de ouro
Para os yanomamis, foi devastador o efeito do empoderamento do garimpo ilegal em seu território, estimulado e aceito ao longo dos quatro anos do governo de Jair Bolsonaro (PL). Houve explosão de casos de malária, adoecimento e mortes por desnutrição grave e incidência descontrolada de doenças associadas à fome, como infecções respiratórias.
A atuação dos garimpeiros foi tão intensa, especialmente em 2021 e em 2022, que os efeitos extrapolaram os limites da terra yanomami e chegaram a territórios vizinhos, acessados por rodovias e estradas de terra.
A reportagem da Folha esteve num desses territórios —a Terra Indígena Boqueirão, na região de Alto Alegre (RR), cidade a 85 km de Boa Vista— e constatou que o garimpo impactou a vida na comunidade. Os efeitos também foram notados em parte das 11 terras indígenas da região.
No Boqueirão vivem 520 indígenas, principalmente da etnia macuxi. Também há famílias wapichanas, a etnia da presidente da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Joenia Wapichana, que é de um território próximo.
O Boqueirão é uma comunidade organizada, cujas famílias vivem da pesca, da caça e da plantação de mandioca, banana, milho e cana. A região é de lavrado, como é chamada a vegetação de savana que parece costear a floresta amazônica.
Os macuxis já superaram há tempos eventuais divergências com os wapichanas, e são comuns casamentos entre as etnias. O que gera conflitos, intensificados nos últimos dois anos, é o garimpo na terra yanomami.
OS MACUXIS
Onde estão
Brasil (Roraima), Guiana e Venezuela
Quantos são
33,6 mil
Quantas aldeias no Brasil
140
Como é o território macuxi
São três blocos territoriais:
- Terra Indígena Raposa Serra do Sol, a mais populosa, com 10 mil indígenas em 85 aldeias (há ainda outras quatro etnias no território);
- Terra Indígena São Marcos, contígua a Raposa Serra do Sol, com 1,9 mil indígenas em 24 aldeias (outros dois povos estão no território);
- Territórios nos vales dos rios Uraricoera, Amajari e Cauamé, como a Terra Indígena Boqueirão.
Fonte: ISA (Instituto Socioambiental)
A terra Boqueirão faz parte da rota dos garimpeiros em direção à terra yanomami. Esse fluxo passou a ser tão intenso nos últimos dois anos que os efeitos para a comunidade foram inevitáveis.
Grupos de garimpeiros passaram a se instalar na terra indígena, com a aceitação de famílias macuxis, cooptadas para atividades relacionadas ao garimpo. Isso alimentou divergências inconciliáveis dentro da comunidade.
Além disso, a exploração de ouro e cassiterita matou o rio Uraricoera de tal forma que os danos chegaram até o trecho do rio usado pelos macuxis e wapichanas para pesca.
A água está barrenta e os peixes sumiram. Os hábitos de pesca precisaram ser alterados diante da realidade nova do curso d’água. Sem transparência da água, os indígenas abandonaram a pesca com flecha.
O garimpo também levou malária ao Boqueirão. Eram frequentes exames diários e nenhum resultado positivo. Agora, são 45 casos ativos, com indígenas em fase de recuperação.
“Aqui virou um lugar que serve de rotas para garimpeiros. E eles começaram não só a passar, mas a ficar na comunidade”, afirma Alexandre Apolinário, 38, segundo tuxaua (cacique) da comunidade e coordenador de um grupo de monitoramento do território.
Na última terça-feira (7), ele protocolou um documento na Funai e na PF (Polícia Federal) em Boa Vista com pedido de retirada dos garimpeiros do território. O documento teve a intermediação do CIR (Conselho Indígena de Roraima).
Apolinário já havia pedido à Funai, no governo Bolsonaro, que instalasse uma barreira de contenção ou uma base de fiscalização diante do fluxo intenso de garimpeiros, agravado a partir de 2021. Nunca houve resposta.
Ele e a família dizem sofrer ameaças de morte em razão dos pedidos feitos.
“O rio [Uraricoera] era muito limpo. A gente enxergava os peixes para pescar. Tinha filhote, cascudo, tucunaré, matrinchã, pacu. Hoje, a gente não enxerga nada, só lama. E de barco ninguém pesca mais, por causa do movimento grande de barcos de garimpeiros”, diz Cosme da Silva, 60, pai de Apolinário. Silva foi um dos responsáveis pela demarcação do território, em 2003.
Quando a reportagem esteve no trecho do Uraricoera mais próximo da terra Boqueirão, dois barcos de garimpeiros trafegavam pelo rio, que se estende até a terra yanomami.
Invasores estão fugindo das áreas de garimpo, em razão de um controle inicial do tráfego aéreo pela FAB (Força Aérea Brasileira) –já flexibilizado– e da expectativa por operações para retirada de garimpeiros. O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) já fez as primeiras ações do tipo, na segunda (6) e na terça (7).
“A água do Uraricoera era limpinha. No período de seca, como agora, dava para enxergar os tucunarés na água. Até 2017, a gente pescava com flecha. Agora não dá mais, está tudo barrento”, afirma Apolinário.
O tráfego intenso de carros pesados do garimpo, carregados com maquinário e galões de combustível, destruiu estradas e pontes de acesso.
Já houve períodos em que os indígenas ficaram isolados, sem possibilidade de transporte de pacientes ou alunos.
Segundo os indígenas, garimpeiros chegaram a controlar o fluxo numa ponte, decidindo quem passava e quem não passava. E também invadiram e interditaram uma unidade do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) em uma ilha no rio que funciona como estação ecológica.
A atividade garimpeira também não respeita o Igarapé Grande, outra fonte de sustento da comunidade, que fica dentro da terra indígena. As águas são poluídas com óleo, combustível e galões de plástico do garimpo.
Os indígenas temem ainda a ação de facções criminosas, como o PCC (Primeiro Comando da Capital), que chegaram ao garimpo na terra yanomami.
“Hoje a gente vê muita gente estranha na comunidade. Quase que nós é que estamos no garimpo deles. E essa terra é nossa”, diz Silva.
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