‘Tuxaua’ de comunidade da terra Raposa/Serra do Sol, da Rede, tomou posse em Uiramutã
Contrariando o histórico de falta de representatividade de indígenas na política, grupos de Roraima costuraram uma candidatura em uma assembleia independente de partidos, lançaram uma chapa com líderes de comunidades e agora administram o município de Uiramutã, no extremo Norte do país.
Situado dentro da terra indígena Raposa/Serra do Sol, esse é o município com a maior população indígena do Brasil proporcionalmente, de acordo com dados do último Censo, de 2010: eles representam 88% de Uiramutã.
Benisio Roberto de Souza, da Rede Sustentabilidade, assumiu a prefeitura em janeiro após se eleger com 42% dos votos válidos, superando um ex-prefeito do PP que tentava a reeleição.
Agricultor e pecuarista na região, o novo prefeito concorreu com o nome de urna de Tuxaua Benisio —Tuxaua é como é chamado o líder ou representante de cada comunidade indígena no estado.
Benisio, 52, é da etnia macuxi e ocupou o cargo por anos em uma das principais vilas da região, o que lhe rendeu também projeção na política local.
No fim de 2019, um encontro de representantes de dezenas de comunidades da região o indicou para concorrer a prefeito. Ele anteriormente já havia sido vereador pelo PC do B, além de ter tentado lançar uma candidatura a prefeito pelo PT, barrada por problemas de registro.
Os indígenas apelidaram o formato de escolha de “política do malocão” —referência a uma espécie de galpão nas vilas, onde acontecem encontros e assembleias.
Para vice na chapa, foi escolhido um jovem professor de uma dessas comunidades, Jeremias Souza Lima, 30, que nunca tinha concorrido. Também macuxi, ele se filiou ao PROS para disputar a eleição.
Benisio foi um dos únicos cinco prefeitos eleitos no país em novembro passado pela Rede Sustentabilidade, partido fundado pela ex-presidenciável Marina Silva. “Foi uma construção política, da comunidade, da organização”, diz Tuxaua.
A promessa da nova gestão é manter esse tipo de relação com os grupos também ao longo do mandato, com consultas e prestação de contas.
Foi esse tipo de indicação comunitária que também projetou em 2018 a então candidata a deputada federal Joenia Wapichana, também da Rede, eleita naquele ano. A deputada, advogada que havia atuado em causas dos índios, integra os movimentos de renovação política Agora! e RenovaBR.
O apoio do partido acabou se tornando fundamental no pleito municipal. A Rede repassou à candidatura de Uiramutã R$ 129 mil de fundo eleitoral, recursos especialmente importantes em uma disputa em um município com população espalhada por uma área cinco vezes maior do que a do município de São Paulo.
Hoje com 11 mil habitantes, Uiramutã, a 290 km de Boa Vista, costumava até ter sua própria existência questionada pelos índios. A cidade foi fundada nos anos 1990, e sua sede fica rodeada pelas comunidades.
Nas discussões sobre a homologação da terra indígena, na década seguinte, era cogitada a desocupação da sede do município, o que acabou não acontecendo.
“Por anos, a comunidade indígena nem queria participar [da política local], que era para não reconhecer o município”, diz Joenia Wapichana.
A disputa jurídica pela demarcação da Raposa/Serra do Sol se tornou uma das mais simbólicas do país envolvendo os direitos dos índios.
Em 2009, produtores rurais foram retirados da região, em cumprimento à decisão do Supremo Tribunal Federal que determinou a homologação da área em território contínuo —a sede do município foi uma das exceções regulamentadas.
Mesmo sub-representadas na política, as comunidades indígenas locais desempenharam um papel de ativismo naquele imbróglio.
Benisio já trabalhou para o CIR (Conselho Indígena de Roraima), uma das entidades mais atuantes na efetivação da demarcação.
Durante a eleição, porém, diz que teve dificuldade de fazer ser compreendida nas comunidades a dinâmica da política eleitoral. Seu material de campanha trazia a frase: “Vote no indígena”.
“Sou macuxi puro mesmo. A minha primeira língua, desde o amanhecer em casa, até na prefeitura, é o macuxi. Em segundo lugar, tento o português. Meu pai, minha mãe, meus netos falam macuxi. Minha mãe mal fala português”, diz ele.
Quando adolescente, frequentou um internato de uma missão da Igreja Católica em uma das vilas da terra indígena, um centro formador de líderes.
Agora, na Câmara Municipal, o governo do novo prefeito é minoria entre os nove vereadores eleitos. O ex-tuxaua, porém, é tido como conciliador e diz não ter nenhuma restrição ao diálogo com não índios e que foi eleito com votos de todos.
Para o vice-prefeito Jeremias, a política adotada pelo governo Jair Bolsonaro, com uma série de declarações contrárias à existência de terras indígenas e projetos de exploração dessas áreas, ajuda a acirrar o clima na localidade.
Ele diz que outros candidatos no pleito local também se declaravam indígenas, mas não tinham ligação com o dia a dia comunitário. Na cidade vizinha de Normandia, ainda na área da Raposa/Serra do Sol, também houve articulação dos grupos na eleição.
Após a posse no mês passado, Benisio editou medidas restringindo atividades comerciais por causa da pandemia do coronavírus, um tema especialmente sensível entre os índios. Também nomeou secretários igualmente indígenas.
Ele também reclama da situação do caixa da prefeitura e de dívidas herdadas. “Não tem recurso. Não tem máquinas, não tem nada. É muito difícil.”
Das receitas da prefeitura, 85% são de transferências recebidas da União, do estado e de convênios.
Questionado sobre as diferenças entre ser tuxaua e prefeito, ele diz que a gestão pública exige o conhecimento e o cumprimento de uma série de leis e regimentos complexos, enquanto a liderança comunitária é exercida mais pelo diálogo e pela convivência com os integrantes do grupo.
Ao ser questionado sobre sua ideologia política e como se define no espectro ideológico, disse à reportagem: “Eu fico neutro para buscar desenvolvimento para o meu povo”.
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