Do trauma da Segunda Guerra ao trabalho na revista Realidade, fotógrafa narra sua vida em documentário

Leão Serva

Gyuri era o nome do primeiro amor da então adolescente Claudia Andujar, numa pequena aldeia do leste europeu durante o Holocausto dos judeus, às vésperas do final da Segunda Guerra Mundial.

Foi esse o nome escolhido para o documentário sobre a intensa vida da artista que se tornaria uma das mais importantes fotógrafas do Brasil no século 21.

O documentário é simples, composto apenas de depoimentos de Andujar, de seu amigo há mais de 50 anos, o missionário italiano Carlo Zacquini, e do líder yanomami Davi Kopenawa. Imagens de cobertura servem como descanso e ligação entre as falas. A simplicidade do conteúdo é importante para destacar e deixar o espectador compreender a complexidade da vida da personagem.

A edição singela do filme esconde a dificuldade logística da produção, que levou Andujar, Zacquini e o filósofo Peter Pál Pelbart, que faz as vezes de entrevistador, até a casa de Davi Kopenawa, na comunidade de Watoriki, nas profundezas da terra indígena yanomami, numa área até há pouco bem preservada da selva amazônica.

Andujar tem problemas de mobilidade e tem de se deslocar em cadeira de rodas. O filme retrata a longa jornada entre a pista de pouso e a maloca de Kopenawa, a grande emoção de Andujar de reconhecer o cenário de outras viagens e reencontrar Kopenawa e sua comunidade.

A biografia de Andujar é uma imensa confusão. Ela nasceu na cidade suíça de Neuchatel em junho de 1931, sua mãe era protestante e seu pai judeu húngaro. Conforme a tradição judaica, sendo filha de uma mulher cristã, Claudine Haas, seu nome de registro, não era considerada judia. Ainda pequena, a família mudou para a vila de origem do pai, Orádea, na região da Transilvânia, parte da Hungria que foi cedida à Romênia ao final da Primeira Guerra Mundial —que voltou ao controle húngaro durante a Segunda Guerra e hoje está de novo em território da Romênia.

Quando tinha oito anos, os pais se separaram e ela foi morar com o pai. Durante a guerra, foi internada em um colégio católico. Com o agravamento dos conflitos e a suspensão das aulas, voltou a morar com a mãe. Um dia, o pai as procurou para se despedir, sabia que ia ser levado do gueto e queria se desculpar por ter sido distante.

Na mesma época, ela procurou o menino judeu por quem nutria um amor platônico. Foram ao parque, trocaram um primeiro beijo que foi também o último e único. Os judeus foram levados a Auschwitz e mortos. Com a aproximação do Exército russo, o conflito volta a se agravar e a mãe decide fugir para a Suíça com a filha. Com 12 ou 13 anos, Andujar já tinha passado por várias nações e tragédias.

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Veja cenas do documentário ‘Gyuri’, que resgata trajetória da fotógrafa Claudia Andujar

Claudia Andujar e Davi Kopenawa em cena do filme 'Gyuri'

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Toda essa memória dramática ela narra na primeira parte do documentário, ainda em São Paulo. Ela fala em húngaro, aparentemente com certos lapsos, ao filósofo Peter Pál Pelbart, nascido na Hungria, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e tradutor de húngaro.

Há momentos da memória em que seus gestos retratam a própria emoção de menina apaixonada, como quando passa os dedos sobre os lábios para descrever o primeiro beijo. Em outro momento, o rito facial retrata a resignação impotente diante do destino do pai. Andujar olha para baixo e contém a emoção ao descrever o último encontro antes de ele ser levado ao campo de concentração.

Após o fim da Segunda Guerra, Andujar deixou a mãe na Suíça e foi morar com parentes do pai nos Estados Unidos, onde estudou artes plásticas, querendo ser pintora. No início dos anos 1950, casou-se com um jovem espanhol exilado nos EUA, de quem adotou para sempre o sobrenome Andujar, mas logo se separou quando ele decidiu se alistar como voluntário no Exército americano para lutar a Guerra da Coreia; ela achou imperdoável para uma vítima de guerra.

Em 1955, decidiu visitar a mãe, que tinha se mudado com o novo marido para o Brasil. Encontrou na fotografia uma forma de se aproximar das pessoas mesmo sem falar a língua. Se revelou um talento no novo meio de expressão visual. Passou a visitar comunidades de caiçaras no litoral, aldeias indígenas no interior; emplacou reportagens em revistas internacionais e vendeu fotos para museus importantes dos EUA.

Assim, com um currículo fornido, foi contratada para trabalhar na revista Realidade, da editora Abril, que tinha contratado os melhores repórteres fotográficos em atuação no Brasil, incluindo entre outros craques a britânica Maureen Bisilliat, o brasileiro Walter Firmo, os americanos David Drew Zingg e George Love, com quem Andujar se casou em 1967.

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Conheça a série ‘Genocídio do Yanomami: morte do Brasil’, de Claudia Andujar

Uma das 228 imagens de 'Genocídio do Yanomami: morte do Brasil', de Claudia Andujar, que são exibidas ao público na galeria Vermelho

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Em 1970, a Realidade mandou sua seleção de repórteres para a Amazônia, com a missão de descobrirem reportagens legais. Andujar escolheu conhecer os índios yanomami, de recente contato. Fez uma reportagem, uma foto sua ganhou a capa da edição, que logo esgotou e se tornou objeto de interesse de colecionadores.

Ao voltar a São Paulo, ganhou uma bolsa da Fundação John Simon Guggenheim para desenvolver um trabalho de longo prazo morando com os yanomami. E assim aprofundou seu casamento com os indígenas. Era o tempo da ditadura militar, que concebeu o projeto megalomaníaco de abrir uma rede de estradas paralelas às fronteiras do Brasil, ali chamada de Perimetral Norte. O enxame de trabalhadores levou às comunidades indígenas a primeira epidemia de sarampo, matando milhares deles.

Em reação às invasões e ao virtual genocídio em curso na época, Kopenawa, Andujar, Zacquini e o antropólogo Bruce Albert, com outros companheiros, iniciaram a Campanha para Criação do Parque Yanomami, a CCPY.

No primeiro momento, a ditadura a expulsou da região. Mas aquilo a liberou para viajar o mundo fazendo campanha pelos yanomami. Houve um momento em que todos os dias durante dois anos havia protestos na porta da Embaixada do Brasil em Londres, para citar um exemplo.

A campanha internacional virou um espinho no pé da ditadura e do governo de transição de José Sarney. O primeiro presidente eleito após a ditadura, Fernando Collor, aceitou o argumento e reconheceu a terra indígena yanomami em 1992, uma década e meia após o início da campanha.

Foi assim que Kopenawa a convenceu a ir levá-lo à pequena Orádea de sua infância: “Eu queria comer a comida húngara”, conta Kopenawa, que achou naquele gesto um jeito de conhecer a alma de Andujar como ela conhecia a de seu povo.

GYURI

  • Onde Em cartaz nos cinemas
  • Classificação Livre
  • Produção Brasil, 2021
  • Direção Mariana Lacerda

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/07/gyuri-vai-da-infancia-de-claudia-andujar-a-sua-dedicacao-aos-yanomami.shtml

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