Retrato da escritora Heloisa Prieto, que lançou ‘The Musician’ nos EUA – Divulgação

Escrito em inglês, ‘The Musician’ mistura falas de Ailton Krenak e cultura guarani sem cair no fetiche do exotismo

Bruno Molinero

SÃO PAULO

Segunda Guerra Mundial ainda se desenrolava pelas trincheiras da Europa quando o pai de Heloisa Prieto deixava Santos, no litoral paulista, rumo à cidade vizinha, São Vicente, onde gostava de brincar com os guaranis. “Ele era hiperativo quando criança, uma peste, mas se acalmava quando encontrava os indígenas“, conta a escritora.

A relação durou a vida toda. Mais tarde, ele se aproximou dos xavantes e transformou a infância de Prieto num território povoado por diferentes povos que frequentavam a casa da família. Isso acabou respingando na própria vida da autora, que anos depois conheceria nomes como Ailton KrenakDaniel Munduruku, Olívio Jekupé e outros escritores que ajudam a formar o que chamamos de literatura indígena brasileira.

Todo esse contexto aparece no novo livro de Prieto, que acaba de ser lançado. “Os personagens trazem coisas que ouvi de pajés que cuidaram de mim, além de falas do Krenak e de outras pessoas”, diz ela, mencionando especialmente os moradores da aldeia guarani Krukutu, em Parelheiros, na zona sul de São Paulo. Não à toa a história é dedicada a Karai Papa Mirim, Olívio Jekupé, Maria Kerexu, Aparício, Kamila Pará Mirim, Owera, Tupã Mirim, Ailton Krenak, Kaká Werá e Daniel Munduruku.

Mas há uma diferença —apesar de ser uma ficção que fala do Brasil e de seus povos indígenas, a obra não foi escrita em português.

“The Musician” nasceu assim mesmo, em inglês, e foi publicado primeiro nos Estados Unidos, no fim do ano passado, pela editora Koehler Books. Ainda sem previsão para sair por aqui, o título já tem tradução pronta, feita pelo escritor Victor Scatolin.

“Escrevi quando já existia essa perseguição contra os povos originários. Eles estavam apavorados, era o auge do genocídio. Queria dar nome aos bois, mostrar que a boiada estava passando, fazer uma denúncia”, diz Prieto. “Mas uma denúncia literária, que fala da relevância daquelas pessoas e da razão de a gente preservar tudo aquilo.”

O tal músico do título é Thomas, um jovem que enfrenta a solidão após a morte dos pais e que usa a música como tentativa de resposta a seus dramas. Depois de tocar numa praça de São Paulo e encontrar os demais personagens da trama, ele se vê num dilema —confiar na jovem Dora, e talvez perder todo o seu dom musical, ou ouvir Marlui, garota guarani que herdou os poderes espirituais de seu avô pajé e que deseja protegê-lo dos perigos.

Por trás da aventura adolescente, que aborda temas como o primeiro amor, a luta do bem contra o mal e os dramas que envolvem um rockstar, a narrativa apresenta dilemas latentes do Brasil contemporâneo e é salpicada com a cultura de diferentes povos indígenas do país, sobretudo dos guaranis, mas sem cair no fetiche do exotismo.

“Uma das revisoras americanas questionou se não seria melhor os personagens largarem os celulares quando entram no contexto da floresta. Mas eu disse que não, porque isso não seria verdade”, conta a autora. “O pessoal lá gosta muito das redes sociais. Eles elegem a internet como uma coisa boa.”

Mas então por que escrever essa história em inglês e publicá-la primeiro fora do Brasil?

Prieto conta que “The Musician” surgiu a partir de sua experiência num grupo de escrita irlandês, do qual faz parte ao lado de escritores e editores do mundo todo. Os capítulos que formam o romance foram escritos para os encontros online semanais, nos quais os textos dos membros são lidos e debatidos. Foi assim também que apareceu o convite da Koehler Books.

Essa também foi a origem de algumas partes mais didáticas da trama, como as anotações de Thomas, que ajudam o leitor a se situar, sobretudo o estrangeiro. Logo no começo, por exemplo, o personagem faz uma lista bem mastigadinha dos principais povos indígenas brasileiros. Mais adiante, numa intervenção em itálico, é dada a explicação do que é um pajé, resumido como uma espécie de xamã.

Muito por causa dessa relação com os saberes da floresta e com uma certa transcendência, o livro está sendo vendido nos Estados Unidos como uma obra jovem de realismo fantástico —essa etiqueta literária que originou o tal boom latino-americano décadas atrás e que se tornou uma espécie de sombra para a região.

“Talvez o realismo fantástico esteja mais no olhar dos personagens. Os guaranis desvendam as coisas com outro repertório, eles não veem o sobrenatural como sobrenatural. O sobrenatural é natural, faz parte do dia a dia”, diz Prieto.

THE MUSICIAN

  • Preço a partir de US$ 15,95 (R$ 83)
  • Autor Heloisa Prieto
  • Editora Koehler Books (somente edição americana)

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/blogs/era-outra-vez/2023/03/heloisa-prieto-lanca-antes-nos-eua-livro-sobre-povos-indigenas-brasileiros.shtml

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