Líder e curandeiro, Haru Kuntanawa lança projeto de embaixadores para proteção da Amazônia e dos saberes dos povos da floresta

Eliane Trindade

SÃO PAULO

Nem cacique nem pajé ou mesmo xamã. Haru Kuntanawa, 40, quer ser conhecido como curandeiro e líder futurista de uma comunidade indígena de 400 membros espalhados por três aldeias no município de Marechal Taumaturgo (AC), fronteira de Brasil com Peru.

Um sonho que compartilha há cinco anos com a mulher, a médica e terapeuta Margaret Mary Halle, 34, que deixou os Estados Unidos para morar na aldeia Kuntamanã, onde nasceu o primeiro filho do casal há 16 meses

E Runay Kuntanawa Halle já vai ganhar uma irmãzinha. Grávida de seis meses, a americana batizada com o nome indígena de Hayra é colíder dos projetos da Associação Cultural e Ambiental Kuntanawa, presidida pelo marido.2 5

Amor de índio

Haru Kuntanawa, líder do povo Kuntanawa, e a mulher, a médica e ativista norte americana Margaret Halle, que estão lançando programa Guardiões da Floresta
Haru Kuntanawa, líder do povo Kuntanawa, com a mulher, a médica norte-amerciana Margaret Halle, e  o filho Runay, de um ano e meio, nascido  na aldeia no Acre

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O casal se conheceu no Peru, onde os dois tentavam por diferentes caminhos viabilizar um centro de cura com base nos saberes ancestrais dos povos da floresta.

Haru conta que seu inglês até então se resumia a duas frases: “I love you” e “Thank You”.

“No começo, usávamos o Google Tradutor para nos entendermos”, explica Margaret, graduada pelo Oregon College of Oriental Medicine, com especialização em acupuntura e hipnoterapia.

O “Eu te amo” e “obrigado” renderam mais do que uma história de amor entre seres de mundos tão distantes.

Ela foi parar em Pisac, um dos maiores sítios arqueológicos do Vale Sagrado dos Incas, localizado a 33 km de Cuzco, guiada pelo que define como um chamado espiritual para abrir o coração e seguir novos caminhos.

O encontro com Haru foi como a abertura de um portal. “Senti uma energia enorme. Eu sabia que ele era uma ótima pessoa e que seríamos grandes amigos.”

Um mês depois, a amizade virou romance, quando ela desembarcou na Reserva Extrativista do Alto Juruá, dentro da qual os Kuntanawa pleiteiam 100 mil hectares a serem demarcados como terra indígena.

Chegou a um território parcialmente destruído e ameaçado pela exploração de madeira, agricultura e pecuária, mas reivindicado pelos “caboclos do Milton”.

Assim são conhecidos os descendentes de um povo que teria sido praticamente exterminado durante as perseguições armadas aos indígenas na abertura dos seringais no Acre.

Neto de seu Milton, Haru é responsável pelo ressurgimento cultural de seu povo, após promover uma aliança entre as tribos do mesmo tronco linguístico Pano.

“Não podemos ficar presos a guerras e desentendimentos do passado”, diz Haru. “Precisamos levar dignidade para os povos indígenas, detentores da sabedoria sobre os territórios e a diversidade, mas que não foram incluídos na construção do país.”

Estudiosa da medicina oriental, especialmente a chinesa, a pesquisadora norte-americana encontrou no líder Kuntanawa o desejo de resgatar ritos de cura por meio das plantas sagradas da Amazônia.

“Unimos os pensamentos”, diz Haru, sobre a companheira, com quem se casaria um ano depois do encontro no café no Vale Sagrado.

“É importante integrar todos os tipos de medicina”, afirma Margaret, que se embrenhou na Amazônia graças a uma bolsa de estudo para experienciar e entender as curas praticadas pelos povos da floresta.

A história de amor e de ativismo do casal está no documentário “Ética da Floresta contra o Apocalipse do Capital”, dirigido por Newton Cannito, parte do longa “Utopia Brasil” com lançamento previsto para o final de maio.

No filme, Haru defende um debate ecológico que leve as pessoas a enxergar outros valores, para além do dinheiro. “O Capitalismo já causou muita destruição”, diz ele, ao lado de outras lideranças que apostam em uma ética indígena como alternativa à crise socioambiental do século 21.

“A melhor forma de proteger a floresta é saber que ela é você. Por isso, estamos chamando todo mundo para lutar junto, ser um guardião, um embaixador de uma causa que é de toda a humanidade.”

De Austin, no Texas, onde passa uma temporada nos Estados Unidos, ele falou com a Folha sobre uma aliança global que articula para fortalecer as tradições do seu povo e também proteger a floresta, os saberes ancestrais e as plantas medicinais.

Nesta terça-feira (19), quando se comemora o Dia do Índio, Haru lança o programa Guardiões da Floresta, par convocar aliados ao redor do mundo dispostos a contribuir para proteger sua cultura e restaurar a própria terra.

“O mundo está preocupado ao ver que o plantio de soja, a criação de gado e a mineração estão destruindo a Amazônia”, diz Haru. “Está provado que povos indígenas sabem cuidar da floresta e muitas pessoas querem nos ajudar.”

A Terra exige que coloquemos a natureza de volta no centro da vidaHaru Kantanawa

Líder indígena e curandeiro

Os embaixadores da luta dos Kuntanawa vão poder doar para projetos de geração de renda e de sustentabilidade para manter a floresta em pé, apoiando seus habitantes para que não precisem devastá-la para sobreviver.

“Estamos em um momento crítico no planeta, em que pessoas de todos os continentes, todas as raças e todos os credos estão sendo chamadas a agir coletivamente para restaurar o equilíbrio”, afirma Haru.

“A Terra exige que coloquemos a natureza de volta no centro da vida.”

Haru compara sua aldeia a um grande laboratório na selva. É dali que busca não só remediar, mas também curar as pessoas e o próprio planeta, por meio de rituais e sessões de cura com rapé, ayahuasca e centenas de outras plantas sagradas e medicinais.

O rapé, por exemplo, é indicado pelo curandeiro para uma verdadeira limpeza anti-estresse.

“É uma cura sagrada à base de tabaco, cascas de árvores e ervas medicinais. Cada ingrediente tem uma função interessante contra o estresse.”

Mistura, diz ele, que vem de saberes milenares. “Meu avô, meu pai e toda nossa família conhece muito essa medicina natural que estamos resgatando.”

Na pandemia, Haru diz que sua aldeia não perdeu ninguém para o novo coronavírus. “Minha avó de 97 anos pegou Covid três vezes e se curou usando as plantas sagradas.”

O neto se orgulha de honrar a medicina à base de plantas. “Esses usos sagrados de ervas medicinais podem curar o físico, o emocional e o espiritual.”

O curandeiro está na reta final de uma viagem de dois meses pelos Estados Unidos. O périplo ativista se encerra em maio, quando Haru e a mulher retornam à aldeia para o nascimento da filha.

O mais novo integrante da nação Kantanawa virá ao mundo em um sítio arqueológico onde o pai tem descoberto urnas funerárias com pedaços de cerâmica, machados e outros objetos deixados pelos ancestrais.

“É preciso reconhecer o passado para que se possa construir um futuro para uma humanidade que se desconectou de sua origem.”

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/redesocial/2022/04/indio-e-medica-americana-se-apaixonam-na-busca-de-cura-do-planeta.shtml

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