Projeto em Mato Grosso vende espécies para áreas de reflorestamento do bioma, que enfrenta desmate acelerado pelo agronegócio
Dado GaldieriDaniel GrossmanALDEIA RIPÁ (MT) e BOSTON
Em uma manhã abafada de dezembro passado, oito mulheres e seu cacique deixaram a aldeia indígena xavante Ripá, na Terra Indígena Pimentel Barbosa, a bordo de um caminhão. Depois de alguns quilômetros, ao fim da estrada, começaram uma caminhada em fila indiana por trilhas quase imperceptíveis, escondidas abaixo da grama que lhes chegava ao joelho.
A sombra, pouca, vinha das árvores finas, baixas e retorcidas. “É o amor que sentimos pelas plantas, por seus frutos e sementes que nos faz caminhar sob o sol escaldante sem reclamar”, diz Neusa Rehim’Watsi’õ Xavante, filha do cacique.
A maioria dos cerca de 20 mil xavantes vive no cerrado em Mato Grosso, um mosaico de florestas e pastagens, conservação e desmatamento, que cobre 40% do estado. Apesar de mais seco e menos denso do que a floresta amazônica, o cerrado conta com fauna e flora exuberantes e únicas.
Por isso, biólogos costumam chamá-la de a savana mais biodiversa do mundo e estimam que 5% das espécies de plantas e animais do planeta vivam nesse bioma.
Nas últimas décadas, porém, aproximadamente 12% do cerrado em Mato Grosso passou a dar lugar a pastagens de gado e campos de monocultura de grãos.
Há sete anos, os membros da aldeia Ripá fazem parte de um grupo que trabalha para restaurar parte da vegetação do cerrado. O objetivo é proteger seu território e, ao mesmo tempo, melhorar a qualidade de vida dos moradores, vendendo sementes que eles coletam na região.https://arte.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/05/07/terra-indigena/?initialWidth=911&childId=infographic-1&parentTitle=Ind%C3%ADgenas%20xavantes%20coletam%20sementes%20para%20restaurar%20cerrado%20-%2004%2F06%2F2022%20-%20Ambiente%20-%20Folha&parentUrl=https%3A%2F%2Fwww1.folha.uol.com.br%2Fambiente%2F2022%2F06%2Findigenas-xavantes-recolhem-sementes-para-restaurar-o-cerrado.shtml
Desde que tem memória, o povo xavante faz viagens frequentes para a coleta de sementes. Elas são conhecidas como “dzomoris”. Essas expedições durante as quais homens caçam e mulheres colhem frutas e raízes são parte de seu calendário cultural.
Na aldeia Ripá, muitas vezes as mulheres acompanhadas de guias masculinos, que conhecem melhor a geografia pela sua relação com a caça, fazem essas viagens especificamente para coletar sementes que servirão para replantar terras degradadas do cerrado.
“Com estas sementes, vamos reflorestar”, afirma o cacique José Serenhomo Sumené Xavante.
Ironicamente, no entanto, os compradores das sementes muitas vezes são os mesmos indivíduos e empresas responsáveis pelos projetos que causam desmatamento e levam à necessidade de replantio do cerrado.
Um dia após a expedição de coleta de sementes, o cacique levantou cedo para pintar seu corpo com tinta de guerra vermelha e preta. Aplicou cuidadosamente a mistura de urucum e cinzas de raízes de plantas nas costas, no peito e no cabelo.
Sob um céu nublado, na clareira onde as crianças da aldeia costumam jogar futebol, seus guerreiros mais saudáveis, também com os corpos pintados, se reuniram ao redor dele, cantando e golpeando a terra batida com suas bordunas e arcos.
O chefe fez então um discurso curto e eloquente, dizendo que já era chegada a hora de expulsar os forasteiros que haviam cavado uma mina de cal no limite sul de sua reserva. Imitando um pássaro, ele chamou os homens com gritos curtos e agudos, e eles se amontoaram na traseira da velha caminhonete da aldeia.
Poucas horas depois, os guerreiros estavam cara a cara com o mineiro e sua família. Em protesto diante do grupo de homens pintados, ele apresentou documentos que sua esposa trouxe às pressas. Afirmou que os documentos mostravam que a mina não estava em território indígena. Os indígenas, tentando decifrar os papéis, falavam entre si em xavante, o que irritou o garimpeiro.
Os ânimos se alteraram e os indígenas continuaram insistindo em saber quem autorizou a operação. O homem disse então que um dos outros chefes xavantes havia dado permissão para montá-la.
Os líderes indígenas não têm autoridade para permitir que pessoas de fora desmatem e usem a terra ou seus recursos minerais. Mas na prática isso acontece, e o cacique José Sumené está ciente disso. Não havia mais nada a fazer. Ele e seus guerreiros voltaram para o caminhão e foram embora.
A maior parte das áreas desmatadas do cerrado são, porém, terras privadas, fora dos limites das reservas indígenas. O agronegócio ocupa vastas áreas com monoculturas industrializadas de soja, milho e algodão. No governo Jair Bolsonaro (PL), esse processo se acelerou.
Foi para ajudar a restaurar as florestas devastadas de Mato Grosso, mesmo que simbolicamente, que o cacique participou da expedição de coleta de sementes no dia anterior.
Essa expedição, aliás, teve um início bastante assustador. Logo que as coletoras saíram do caminhão e começaram a caminhar, uma cascavel bloqueou seu caminho. As mulheres gritaram depois de quase pisá-la.
A serpente deslizou rapidamente para atrás de uma árvore. O líder então correu em seu encalço e a matou com golpes de borduna.
Como se nada houvesse acontecido, a expedição se reagrupou e continuou subindo a elevação suave em direção às encostas da serra do Roncador, formação rochosa sagrada para o povo xavante, de acordo com o cacique. Quanto mais perto das chapadas, mais altas e próximas as árvores crescem —e o ar abafado finalmente esfria.1 17
Tribo xavante coleta sementes para restaurar o cerrado em Mato Grosso
Mulher indígena caminha com cestos cheios de frutas e sementes durante expedição de tribo xavante na Terra Indígena Pimentel Barbosa (MT) Dado Galdieri – 6.jan.2022/Hilaea MediaMAIS
A expedição fez uma pausa em uma área pantanosa que cobre um pequeno vale entre chapadas. As mulheres se espalharam por um labirinto de riachos, colhendo punhados de buriti do chão encharcado, colocando-os rapidamente nas cestas que teceram com a fibra das folhas da mesma palmeira —as palmeiras de buriti prosperam onde o solo está encharcado e costumam ser indicadores de seu bom funcionamento.
O povo xavante sabe que há mercado para essa fruta em outros lugares. Mas as mulheres da aldeia Ripá estavam também colhendo para consumo próprio, planejando vender as sementes depois.
O lucro com a venda de sementes, para toda a comunidade, é de cerca de R$ 6.000 por ano. Isso complementa sua renda com a venda de artesanato e subsídios governamentais que recebem, mas é notadamente insuficiente para manter o grupo em condições de proteger um território tão vasto.
No entanto, não é a renda a principal razão para esse trabalho, afirmam os xavantes: cada “dzomori” ajuda a curar a floresta danificada. “Os não indígenas estão destruindo o cerrado e não entendem a natureza”, avalia Neusa.
Na jornada acompanhada pela reportagem, a procura deu resultados para além do buriti. Ao todo, cada mulher conseguiu coletar mais de dez quilos de frutos e sementes.
Uma mulher da equipe escalou a copa retorcida e atarracada de uma árvore de murici, sacudindo com força alguns galhos. A árvore vibrou, e uma chuva de frutas firmes e amarelas cobriu o chão.
Algumas árvores mais à frente, outras mulheres apanharam frutas pálidas caídas ao redor de um angelim.
As sementes recolhidas pelo povo da aldeia Ripá encontram mercado entre proprietários da região em razão das leis que preveem a manutenção da vegetação nativa.
Em Mato Grosso, entre 35% e 80% da floresta devem ser protegidos, embora a realidade seja que as fazendas muitas vezes reservem menos espaço do que deveriam.
Quando há desmate além do limite —e a sua fiscalização— os donos precisam replantar árvores nativas e podem, assim, recorrer às sementes.
Os moradores de Ripá e de outros 24 grupos indígenas em Mato Grosso vendem sua coleta para uma rede que funciona como um intermediário. A chamada Rede de Sementes do Xingu é o maior fornecedor de sementes nativas do Brasil.
Em 2007, uma coalizão de indígenas e não indígenas a fundou como forma de reflorestar a orla do rio Xingu, e a rede tem crescido desde então.
A rede não vende apenas sementes para agricultores e outros clientes —também se oferece para ajudar a plantá-las. Coletores dentro e fora dos territórios indígenas, até mesmo em áreas urbanas, contribuem para o estoque.
Em seus 15 anos, a rede calcula ter vendido mais de 300 toneladas de 220 espécies de sementes, quase tudo apenas para Mato Grosso.
A área replantada é estimada em 74 km2, quantidade que não chega nem perto, contudo, de equilibrar o que foi desmatado. Somente em 2021 a perda de vegetação foi 35 vezes maior (cerca de 2.600 km2) do que a replantada nos 15 anos da rede.
Depois que o cacique, sua filha e as outras mulheres voltaram para a aldeia, havia mais trabalho a fazer. Djanira Pe’Wee Xavante catou as frutas de murici que trouxe, escolhendo as melhores para comer e retirando caules e terra das outras, em um balde d’água.
Após descascar as frutas, colocou as sementes para secar. Os futuros compradores, assim como os indígenas fazem às vezes, utilizarão essas sementes misturadas a dezenas de outras espécies, numa técnica chamada muvuca.
Ela consiste em combinar as espécies de acordo com a sua capacidade de coexistência e lançar as sementes ao ar em direção a pequenas valas abertas previamente. A ideia é que assim, em uma década, o local consiga imitar a floresta nativa.
Bruna Ferreira, diretora da Rede de Sementes do Xingu, admite que a tarefa de recuperar o cerrado ante o desmatamento “às vezes parece desalentadora”.
Ela pondera, no entanto, que as conquistas não devem ser julgadas só pela quantidade de terras restauradas com a dedicação dos envolvidos na rede. O esforço é “um trabalho de resistência, fortalecendo essas comunidades”.
Os jornalistas Dado Galdieri e Daniel Grossman fizeram a reportagem com apoio do Pulitzer Center.
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