Walter Porto

SÃO PAULO

“Os brancos eram assim mesmo. Desde os tempos antigos já surgiram com a espingarda e o livro na mão.”

Uma das tramas ficcionais de “A Repetição” reflete sobre o contato de uma comunidade indígena com a língua portuguesa, atuando quase como um comentário indireto sobre o livro em que está contida.

“A escrita é o instrumento da violência colonial por excelência”, afirma seu autor, Pedro Cesarino, antropólogo que estudou culturas indígenas no mestrado e doutorado. Em seguida, ele aponta um paradoxo. “Mas a escrita também é o principal instrumento de produção de conhecimento tal como ele é hoje.”

“A Repetição” é um livro enigmático que reúne duas novelas —a primeira, baseada num relato verídico, é sobre um homem indígena que se torna um profeta maldito ao anunciar palavras e tecnologias dos brancos.

Na visão de Cesarino, deixar de passar saberes de povos ameríndios ao papel é perpetuar seu silenciamento. Escrever histórias calcadas nessas fontes, com cuidado e reflexão crítica, é se valer de questões que “muitas vezes não fazem parte do imaginário brasileiro”.

“Minha ideia é tentar incorporar repertórios ainda pouco presentes na literatura, expandir seu arcabouço de imaginação e seus horizontes de interlocução”, diz.

É uma tarefa delicada, que ele não encara com leviandade. E obras dedicadas a essa ampliação de fronteiras se disseminam cada vez mais, buscando traduzir saberes indígenas ancestrais a um público ocidental.

Não raro, essa mediação fica ao encargo de brancos, como Cesarino e Rita Carelli, autora do romance “Terrapreta”, vencedor do último prêmio São Paulo de Literatura, e parceira de Ailton Krenak na organização de seus livros ultrapopulares.

“Esse interesse crescente é decorrente de notarmos que estamos entrando num abismo e que outras matrizes de pensamento podem nos ensinar outra forma de estar no planeta”, diz ela.

Esse foi um dos fatores que tornaram Daniel Munduruku um dos autores mais prolíficos e respeitados do país, tendo disputado, com chances reais, uma vaga na Academia Brasileira de Letras no ano passado.

“Sempre considero que a gente faz muito mais sacrifício para entender o Brasil do que o Brasil faz sacrifício para entender os povos indígenas”, afirma Munduruku.

Segundo ele, foram os indígenas que precisaram se adaptar para aprender o português e a lógica do pensamento ocidental —muitas vezes à força. O escritor afirma ter sido “uma das vítimas” do período que sucedeu o golpe militar, quando indígenas eram “obrigados a ir para a escola aprender a ser gente civilizada, como se dizia”, e esquecer suas línguas originais.

Munduruku aponta que a literatura “ainda é um aprendizado para a maioria dos indígenas”, já que a transformação em livro de suas culturas é um movimento novo e de difícil domínio. “Porque lida com um pensamento linear, quadrado, diferente do pensamento indígena, que é da circularidade. Isso exige estudo, e às vezes o ônus da transição é maior que o bônus.”

Assim, ele diz não ver problema na parceria com pessoas brancas para esse transporte intercultural —e não se interessa por discussões sobre lugar de fala.

“Nós já fomos tantas vezes alijados do nosso direito de fala que as parcerias devem ser muito bem-vindas. Tem que ter pessoas como Bruce Albert, que podem dar voz a uma figura como Davi Kopenawa, após estudar sua cultura.”

“A Queda do Céu” e o novo “O Espírito da Floresta”, obras escritas em conjunto pelo antropólogo francês e o líder indígena, amplificaram o alcance de uma pessoa que já era importantíssima, nas palavras de Munduruku. “Se um branco não se debruça sobre essa cultura, vamos perder, como temos perdido, muitos Davi Kopenawa.”

A fala ilustra uma distinção feita por Pedro Cesarino entre a representação e a colaboração. Se antes pessoas brancas falavam por pessoas indígenas se eximindo da voz delas, hoje é mais comum que pessoas de todas as culturas colaborem entre si, num processo que não é necessariamente pacífico, mas crivado pelo debate.

“A tarefa é criar um espaço de interlocução que seja justo e não substitua o ponto de vista de ninguém, que não parta de um lugar congelado de poder e, sim, gere novas formas de relação.”

Mas nem todo livro parte do mesmo propósito. Rita Carelli, que viveu durante parte da infância em meio ao povo enauenê, diz que ainda entendia pouco seus rituais.

“Minha literatura é dar a mão para essa ignorância, assumir que a gente não sabe. Como pretender se colocar como tradutor de um mundo que eu não sou capaz de compreender plenamente?”

Carelli abraça os atritos de comunicação em “Terrapreta”, em vez de tentar escondê-los. “Tudo bem a gente estar num lugar de desconforto”, diz a escritora e atriz. “Nós, brancos, estamos pouco acostumados a isso.”

Mas isso tem mudado. Se Daniel Munduruku sofreu na infância a imposição de outra cultura sobre a sua, hoje seus livros são adotados, veja só, em diversas escolas. “É minha vingança”, brinca ele.

Autor de obras como a antologia “Tempo de Histórias” e a coletânea “Crônicas Indígenas para Rir e Refletir na Escola”, da Moderna, ele reforça a importância da arte para avanços políticos.

“Quando usamos a linguagem simbólica, as pessoas se sentem mais questionadas a respeito de sua própria identidade. Percebem que a elas foi negado o direito de saber quem são —que também são indígenas e africanas, que ser brasileiro é o amalgamento de tudo isso.”

E ele enxerga cada vez mais antropólogos e artistas indígenas interessados em registrar sua cultura em livros. “Ainda vem pela frente uma geração nova, que vai trazer essa leitura outra do Brasil para que ele possa, quem sabe, se descobrir de novo.”

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2023/04/livros-com-raiz-indigena-se-espalham-e-poem-em-debate-a-mediacao-dos-brancos.shtml

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