‘Histórias Brasileiras’ estreia agora depois de polêmica envolvendo veto e inclusão de fotos do Movimento Sem Terra

João Perassolo

SÃO PAULO

Uma tarja preta cobre a expressão “ordem e progresso” numa bandeira do Brasil também negra, presa na parede na vertical, como se estivesse na posição errada. Perto da “Bandeira Afro-Brasileira”, do artista Bruno Baptistelli, outra versão da flâmula nacional, assinada por Leandro Vieira, ex-carnavalesco da Mangueira, troca o tom ufanista original pela inscrição “índios, negros e pobres”.

As obras que abrem a mostra “Histórias Brasileiras”, que começa nesta sexta-feira no Masp, o Museu de Arte de São Paulo, imaginam histórias não oficiais para o símbolo nacional apropriado nos últimos anos pelos bolsonaristas, que deram um sentido único a ele. Estão também expostas versões da bandeira feitas durante a ditadura por artistas hoje parte do cânone, a exemplo de uma colagem de Wesley Duke Lee onde se lê “hoje é sempre ontem”.

Bruno Baptistelli, Bandeira afro-brasileira, 2022
‘Bandeira Afro-Brasileira’, obra de Bruno Baptistelli, na mostra ‘Histórias Brasileiras’, no Masp – Divulgação

Rever criticamente a história do Brasil no momento em que se celebram os 200 anos de sua independência é o principal objetivo da maior exposição do museu neste ano. Depois de uma polêmica que quase tirou da mostra um conjunto de fotografias do Movimento Sem Terra devido a um veto do próprio Masp, “Histórias Brasileiras” acabou por incluir essas obras na montagem.

A exposição tem quase 400 obras de 250 artistas e coletivos espalhados por dois andares, contemplando pintura, fotografia, vídeo, escultura e documentos, de um arco que vai do período colonial até hoje, formando uma enciclopédia da arte brasileira.

Embora comece às vésperas do Sete de Setembro, a exposição não é uma mostra sobre a independência, afirma Adriano Pedrosa, diretor artístico do museu. “É um momento para refletir sobre as histórias brasileiras. A gente tem interesse mais em temas do cotidiano, pautas contemporâneas. Pela sucessão dos temas elencados, você vê que a gente tem mais interesse numa história social, cultural, política, que é relevante para o dia a dia das pessoas.”

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Veja obras que estão na exposição ‘Histórias Brasileiras’

Tela "Desigualdade de Renda Antes da tributação com sobreposição de coeficiente de Gini, 2000- 2019)", de Pedro Victor Brandão

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A julgar pelos oito núcleos da mostra, nossas histórias são de muitos conflitos —dos indígenas pelo direito à terra que foi expropriada pelos colonizadores, do negro contra o branco, de sexualidades diversas em busca de lugar numa sociedade heteronormativa, do sujeito contra o Estado.

A ala chamada “Rebeliões e Revoltas”, por exemplo, mostra a palavra “lute” em letras vermelhas gigantescas no meio da galeria, tecendo relações entre a escultura de Rubens Gerchman da época da ditadura com imagens dos protestos de junho de 2013 e dos atos contra o governo Bolsonaro no ano passado.

Seguindo o tema do momento no circuito de arte, “Histórias Brasileiras” tem dezenas de pinturas figurativas com personagens negros, representados em cultos religiosos, em festas e em favelas, mas também como senhores de sua própria imagem.

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Conheça negras e negros que ganharam biografias em ‘Enciclopédia Negra’

Capa de 'Enciclopédia Negra', de Flávio Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Schwarcz. No retrato, de Mônica Ventura, há Afra Joaquina Vieira Muniz, que viveu em Salvador, na Bahia, no século 19, e representa bem a complexidade do regime escravagista da época

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Na ala “Retratos”, o museu encomendou a artistas negros e indígenas retratos seus de corpo inteiro. Estão ali, entre outros, obras de O Bastardo, Wallace Pato, Panmela Castro e Yacunã Tuxá.

Tuxá se pintou como uma indígena de expressão séria, segurando uma bandeira do arco-íris, num quadro que aparece ao lado do clássico autorretrato sereno da modernista Tarsila do Amaral enrolada num manto vermelho —o contraste entre ambas é evidente.

Autorretrato de Tarsila do Amaral com seu vestido vermelho – Roberto Vazquez/Futura Press/Folhapress

Organizado como uma pinacoteca de retratos brasileiros, o núcleo é o que ocupa mais espaço na mostra e sua ideia é questionar a tradição pictórica europeia de representação da nobreza, “geralmente homens brancos”, afirma Pedrosa, listando retratos feitos por Velázquez e Rubens pertencentes ao acervo do museu. “Em 2014, não tinha uma obra de um artista negro em exposição no Masp. Eram outros tempos, né?”, ele questiona, lembrando o ano em que assumiu seu cargo.

“Histórias Brasileiras” começa agora com dois meses de atraso depois de envolver o museu numa discussão que extrapolou o mundo da arte. Ao vetar a inclusão de algumas fotos do Movimento Sem Terra e de comunidades indígenas durante a produção da mostra, o Masp virou alvo de críticas da opinião pública quando as curadoras do núcleo com tais obras cancelaram toda a seção.

O museu negou a acusação de censura e afirmou que a exclusão das imagens se devia a uma questão de prazo. Por fim, voltou atrás e adiou a abertura da mostra para que os trabalhos de André Vilaron, João Zinclar e Edgar Kanaykõ Xakriabá fossem incluídos e o núcleo do qual fazem parte, montado.

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Veja fotos vetadas e depois incluídas em mostra do Masp

Foto de André Vilaron que foi vetada pelo Masp em mostra que teve núcleo cancelado

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Chamada “Retomadas”, essa ala mostra uma imagem na qual a índia Tuíra Kayapó encosta um facão no rosto do ex-presidente da Eletronorte e, claro, as fotografias vetadas. “Retomadas”, afirma a curadora Clarissa Diniz, é uma expressão usada desde a década de 1980 pelos movimentos indígenas e também se aproxima das lutas pela reforma agrária.

“Então ele é um termo abrangente para falar da luta pelo território.” Mas pode ter outros significados, acrescenta ela, como a retomada do próprio gênero, exemplificado pelo trabalho de Nídia Aranha —a artista pôs numa ampola o leite produzido por seu corpo trans feminino.

Pedrosa, o diretor do museu, conta que a polêmica com o núcleo fez a instituição “rever vários processos, fazer uma análise interna, de coisas que poderiam ser aprimoradas”. “A gente como museu é bem engajado nos debates contemporâneos. Quando você se engaja mais, você acaba mais suscetível a esse tipo de questionamento. Essas coisas são mais difíceis e desafiadoras do que você fazer exposições do século 19 ou sobre a Semana de Arte Moderna de 1922“, diz.

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Quem eram os personagens da Semana de 1922

Almoço de escritores integrantes da Semana de 22, no Hotel Terminus. da esquerda para a direita, de cima para baixo: o jornalista italiano Francesco Pettinati, Flamínio Ferreira, René Thiollier, (abaixo) Manuel Bandeira, tuberculoso, segura um improvável cachimbo, Sampaio Vidal, que participaria da fundação do Partido Democrático, Paulo Prado, Graça Aranha, Manuel Villaboim, que trabalhava na Cia. Prado Chaves, cujo presidente era Paulo Prado, (abaixo) Couto de Barros, Mário de Andrade, Cândido Mota Filho, Gofredo da Silva Teles, genro de d. Olívia Penteado, (sentados) Rubens Borba de Moraes, Luís Aranha, Tácito de Almeida e, à frente, Oswald de Andrade.

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Ainda segundo Pedrosa, o imbróglio fez com que “Histórias Brasileiras” tivesse sua duração encurtada para pouco mais de dois meses em relação aos quatro previstos inicialmente, mesmo que esta seja a exposição com maior investimento de recursos humanos do museu neste ano, com quase todos os curadores e produtores da casa envolvidos, além de vários profissionais externos convidados.

Não é possível estender o prazo porque o subsolo do museu precisa ser liberado para o jantar anual de arrecadação de fundos, em novembro, evento que “gera um recurso enorme”, afirma o diretor.

Além de pôr em discussão o papel do museu, a polêmica vai espalhar mais as obras de certos artistas e talvez atrair mais público. Atendendo a um pedido das curadoras de “Retomadas”, o Masp vai distribuir aos visitantes impressões das fotos inicialmente vetadas de João Zinclar, André Vilaron e Edgar Kanaykõ e ampliar a entrada gratuita para dois dias na semana enquanto a mostra estiver em cartaz.

HISTÓRIAS BRASILEIRAS

  • Quando De 26 de agosto a 30 de outubro (de terça-feira a domingo)
  • Onde Masp – av. Paulista, 1578, São Paulo
  • Preço R$ 50; grátis às terças e quintas
  • Horário terça, das 10h às 20h; de quarta a domingo, das 10h às 18h

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/08/masp-conta-a-historia-nao-oficial-do-brasil-e-destaca-arte-de-negros-e-indigenas.shtml

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