Isaías Fontes foi representante na Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro

MANAUS

São poucos os lugares no mundo mais remotos do que Ucuqui Cachoeira, onde Isaías Fontes nasceu. Fincada às margens do igarapé Uaranã, afluente do rio Ayari, na bacia do Içana, essa comunidade do povo baniwa dista cerca de 300 km e alguns dias de barco até São Gabriel da Cachoeira (AM), a cidade mais próxima, no noroeste do país.

Para os baniwas, no entanto, é ali que se encontra o “umbigo do mundo”, a cachoeira Hipana (Wapuí, nos mapas oficiais), de onde surgiu a humanidade. Membro da Hohodene, uma das grandes linhagens (fratrias) dos baniwas, ele cresceu nesse lugar sagrado entre xamãs e foi alfabetizado por missionários católicos antes de se tornar uma de suas lideranças mais importantes do Alto Rio Negro, uma vasta região no noroeste amazônico que abriga 23 povos.

“Foi amigo, parceiro de luta e inspiração para mim”, diz André Baniwa, 49, vice-presidente da Oibi, organização que fundou e construiu com Fontes, seu primo-cunhado de acordo com a tradição baniwa.

“Isaías era muito atencioso, cuidava das pessoas, se preocupava com o colega, o amigo. Acatava a ideia dos outros, prestava atenção nas pessoas, atuava junto. Nunca dizia ‘eu’, era ‘nós’. Ele tinha um jeito coletivo de mandar.”

Em 1992, Fontes, André e outras lideranças criaram a Organização Indígena da Bacia do Içana (Oibi), que articulou as comunidades baniwas na defesa do território e na aliança com os outros povos do Alto Rio Negro. Colaborou em projetos como a comercialização da inconfundível cestaria tradicional e a implantação das Casas de Pimenta Baniwa, hoje vendida em diversas cidades do país e que já virou até ingrediente e nome de cerveja na Irlanda.

Nos últimos anos, Fontes foi eleito e reeleito o representante baniwa da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn). Como diretor, atuou contra a tentativa de extração ilegal de tantalita, um minério raro, ao longo do rio Içana. Mobilizou as comunidades contra o assédio de um empresário paulista e coletou informações para levar a denúncia ao Ministério Público Federal.

Além das organizações indígenas, Fontes se preocupou com o registro e a transmissão da cultura baniwa, povo que habita também a Colômbia e a Venezuela, com cerca de 18 mil pessoas. “Até hoje, tenho a carta que ele me mandou em 1997 convidando a produzir um livro sobre as histórias antigas dos seus avós”, afirma o antropólogo norte-americano Robin Wright, da Universidade da Flórida (EUA).

“Ele foi intérprete em muitas pesquisas realizadas nos anos 2000 e 2001 com os velhos sábios sobre as doenças infecciosas e se tornou meu assistente de pesquisa uma década depois, quando filmou uma cerimônia de iniciação dos Hohodene de Ucuqui Cachoeira.”

Fontes morreu aos 53 anos em decorrência da Covid-19 na última segunda-feira (1), em Manaus, dias após ser transferido de avião, já em estado grave, de São Gabriel da Cachoeira. Deixa mulher, dois filhos e um neto.

A epidemia tem sido devastadora para os indígenas do Alto Rio Negro, que já perderam, entre outros, o artista Feliciano Lana, o escritor e agente de saúde Aldevan Baniwa, o pajé Manuel da Silva, o educador Higino Pimentel Tenório e, na quarta-feira (3), Valdomiro Arara, fundador da Foirn.

“A situação em São Gabriel é bastante delicada. A única unidade hospitalar não está preparada para tratar os casos agravados”, diz o presidente da Foirn, Marivelton Barroso. “Todos os que são intubados vão a óbito.”

“Os rezadores baniwas lembram a seguinte história no momento da tristeza”, reconta Wright: “Os animais choravam bastante com a morte de uma pessoa querida. Eles a colocaram no caixão, eles a fizeram deitar e choravam. A noite inteira eles choravam, ficaram fracos de tanto chorar. Daí eles a enterraram. Eles ficavam pensando, lembrando, calados e tristes. Então, um deles pegou uma fruta de castanha kuwaida e jogou. Girou, girou, girou, voltou e caiu. Aí eles começaram a rir. Ao rir, as suas almas voltaram ressuscitadas. Assim, trouxe seus corações de volta, trouxe de volta seus corações. Eles rezam sobre a quinhapira, xibé, eles rezam bem”.

 

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/02/mortes-lideranca-do-povo-baniwa-lutou-contra-a-mineracao-ilegal.shtml

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