Londres
A foto na camiseta de Gelvana Rodrigues mostra o menino Thiago, na época com sete anos, sorrindo. É uma das últimas lembranças do filho vivo. Thiago foi arrastado pela lama que atingiu a casa da avó, em Bento Rodrigues (MG) no dia do rompimento da barragem da Samarco. O corpo foi encontrado a 100 km de distância, uma semana depois.
“Minha vida mudou totalmente. Não tenho nem como explicar o quanto eu sofro até hoje. É uma ferida que sangra todos os dias,” disse à Folha, ao chegar ao prédio da corte em Londres.
O desastre foi um golpe duro na família. O pai e o avô de Thiago sofreram um ataque cardíaco e morreram anos depois.
“Nunca recebi nada nem nunca bateram na minha porta para perguntar se eu estou bem. É uma sensação de impotência,” disse.
O desastre de Mariana ocorreu no dia 5 de novembro de 2015, com o rompimento de uma barragem de rejeitos da mineração de minério de ferro operada pela empresa Samarco, pertencente às multinacionais BHP, de origem anglo-australiana, e da brasileira Vale.
Isso provocou o vazamento de cerca de 44 milhões de metros cúbicos de lama tóxica, equivalente a 13 mil piscinas olímpicas. A lama de rejeitos percorreu 675 km, atingiu o rio Doce e chegou ao oceano Atlântico, no litoral do Espírito Santo e sul da Bahia. Dezenove pessoas morreram.
Nesta segunda-feira (21), a Justiça inglesa começou a analisar a responsabilidade da BHP na tragédia.
Parentes de vítimas, representantes de comunidades indígenas e quilombolas atingidas e de movimentos de apoio aos afetados viajaram a Londres para acompanhar o início do julgamento, e reuniram-se em frente ao prédio da corte.
Entre elas, Pamela Fernandes, mãe da criança mais nova morta no desastre. Emanuelle, de 5 anos, foi arrancada dos braços do pai.
“Minha vida mudou totalmente da noite para o dia. Eu nunca mais fui a mesma, nem meu filho ou minha família,” disse.
“Eu morava muito perto do rio, não sobrou nada. Dói muito voltar lá e lembrar de tudo o que aconteceu. Só ficaram as lembranças ruins. Tiraram tudo da gente: lembranças, minha filha, minha casa, minha felicidade. Tudo.”
Nicolas, outro filho de Pamela, sobreviveu depois de se esconder dentro de um carro que flutuava na lama. Hoje, aos 11 anos de idade, tem traumas do desastre.
“Ele nem fala. Ele era uma criança extrovertida, ria por qualquer coisa, hoje ele é muito fechado,” disse Pamela.
“Ele tem marcas nas mãozinhas, na perna. Ele sempre quer cortar o cabelo maior porque, se aparecer a cicatriz, todo mundo fica perguntando. Dói ver uma criança não poder fazer o que quer porque tem um trauma.”
O cacique Bayara, líder da Aldeia Pataxó Gerú-Tucunã, localizada no município de Açucena (MG), explica que a comunidade indígena não pode mais pescar nos afluentes do rio Doce, colher plantas medicinais nos leitos d’água ou realizar rituais.
“Vidas, memórias perdidas, a nossa espiritualidade. [Não podemos] buscar nossas plantas medicinais, nosso alimento. E vai acabar tudo assim? Queremos ver [a BHP] no banco dos réus, para que ela nunca mais possa matar mais povos,” disse.
“Meu povo batiza as crianças na água e não podemos mais fazer nossos rituais à beira do rio. Para nós, isso é muito doído.”
O processo reúne aproximadamente 620 mil vítimas do caso, incluindo 23 mil membros de comunidades tradicionais quilombolas e indígenas e 46 municípios. Apesar de ser julgado na corte inglesa, a base legal é o direito brasileiro.
O julgamento vai até 5 de março de 2025 e ouvirá depoimentos, apresentação de evidências e testemunhos de especialistas em direito civil, societário e ambiental brasileiros e em questões geotécnicas. A sentença é esperada em meados do ano que vem. Os pedidos de indenização se aproximam dos 36 bilhões de libras, ou quase R$ 270 bilhões em valores de hoje.
“Vamos tentar mostrar que a BHP é legalmente responsável e os fazerem pagar pelo crime do colapso da barragem. Essa é uma oportunidade única de ter, em uma das cortes mais importantes do mundo, uma empresa multinacional, a maior mineradora do planeta, e mostrar que são responsáveis pelo pior desastre ambiental da história brasileira,” disse à Folha Tom Goodhead, CEO do escritório Pogust Goodhead, que representa as vítimas.
Em nota, a BHP disse que, se o caso legal no Reino Unido for bem-sucedido, adiaria pagamentos até pelos menos 2028 e prejudicaria os esforços que estão sendo feitos para a realização de um acordo no Brasil.
“As vítimas querem compensação, mas, para ser honesto, o que mais querem é que essas empresas sejam consideradas responsáveis. Ninguém foi preso por causa desse crime. Ninguém vai ser preso porque certos elementos dos procedimentos criminais no Brasil prescreveram. Então, é sobre responsabilidade”, acrescentou Goodhead.
Quase nove anos depois de perder a filha, Pamela está otimista.
“A gente não vai desistir, estaremos aqui de cabeça erguida. A gente não está aqui pelo dinheiro, estamos aqui para ver justiça. Tiraram 19 vidas e isso não pode ficar assim.”
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