À beira do massacre indígena, tribunal não se faz respeitar
Luís Roberto Barroso constatou, semana passada, que o governo federal não o respeita. Nem militares, a quem sempre teve em (muito) alta conta, parecem obedecê-lo.
Mas preferiu contemporizar: “Registro com desalento o fato de que as Forças Armadas brasileiras não tenham recursos para apoiar uma operação determinada pelo Poder Judiciário para impedir o massacre de populações indígenas”.
A frase choca por muitas razões. Não só pela complacência gravada em decisão judicial, mas por vir da pena de quem veio. Barroso passou os últimos dois anos circulando em palcos domésticos e estrangeiros defendendo a tese de que a democracia brasileira não corria riscos. Oferecia um punhado de exemplos anedóticos de “instituições funcionando”. De maneira deselegante, dizia que a visão oposta era “choro de perdedor”.
Levava uma vida pública como se não houvesse Bolsonaro. Completava sua visão de conjuntura com elogios gratuitos a militares. Como ex-palestrante na Escola Superior de Guerra, dizia que militares “pagaram preço muito alto pela ditadura”, não há “razão para temê-los”, só “querem mudar as coisas para melhor”.
Não via que o “gueto pré-iluminista”, como diz, estava exatamente onde enxergou nada mais que “patriotismo e dedicação”.
Aquela imaginação teórica impetuosa, que via no tribunal uma potência para “empurrar a história”, agora se curva à alegação da “falta de recursos”, carimbo burocrático sem maiores explicações da instituição mais beneficiada com aumentos orçamentários.
A frase choca pela resignação diante de mais uma desobediência militar a ordem sua. Em face do risco de “massacre de populações”, só fez registrar seu desalento. Não é uma saída redentora.
Há de se reconhecer que esse é um dos casos mais complexos da história do STF (ADPF 709). Terras indígenas foram invadidas por milhares de garimpeiros que praticam crimes ambientais e contra a vida desses povos. Na pandemia, são vetores de disseminação do vírus.
O STF está há um ano expedindo ordens para que o governo ofereça um plano de proteção sanitária das terras indígenas. Há um ano tenta envolver o governo num “diálogo institucional” com o STF e num “diálogo intercultural” com os povos indígenas. Há um ano recebe do governo planos precários até que o quarto plano foi aprovado, em parte.
Na semana passada, às vésperas de operação no Pará, coordenada entre PF e Exército, pactuada com antecedência, militares pularam fora na última hora e causaram riscos desnecessários a policiais e indígenas.
Não pode haver prova mais contundente de que “diálogo institucional”, de boa-fé, não funciona com governo de má-fé. Um governo, que toda semana sinaliza, do alto do palácio, autorização para invasão de terra indígena e ainda promete leniência fiscalizatória e anistia futura, não está interessado no diálogo. Mas está muito interessado nesse inconsequente ping-pong do STF.
Por quase 30 anos, o STF entoava orgulhoso o grito da “última trincheira do cidadão” e do “guardião da Constituição”. Esbanjou heroísmo nas palavras e nas promessas salvacionistas, mas economizou em rituais básicos de construção do capital político, de respeitabilidade, de manutenção da autoridade jurídica acima de qualquer suspeita.
A não promiscuidade é beabá da ética judicial. Muitos ministros do STF rejeitaram o princípio e se presumiram insuspeitos nas situações mais escandalosas de conflito de interesse. Maximizaram poder individual de chicana e naturalizaram tribunal anômalo (segundo qualquer parâmetro de anomalia). E os anos foram passando.
Consideram normal ministro votar em caso sobre delação que afeta a si próprio, para citar exemplo recente. Alguns advogados defenderam o desvio pois o voto sozinho não definiu resultado do colegiado. Então tudo certo. Outro ministro mantém em sua gaveta há quase dez anos caso sobre auxílio ilegal a juízes do TJ-RJ, seu estado. Autodegradação voluntária que continua a assombrar.
O STF brincou no bosque magistocrático enquanto o autocrata não vinha. No ápice da da desmoralização, o autocrata chegou. Não foi só infeliz coincidência. Um tribunal enfraquecido pode ser desobedecido sem custos, exceto para a democracia. “Diálogo institucional” pode significar exatamente isso. Um finge que manda, o outro finge que obedece.
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