Em Roraima, indígenas bloqueiam estradas de acesso a comunidades e expulsam garimpeiros. Em Mato Grosso, também há barreiras em vias terrestres para impedir a entrada na região do Xingu. Na divisa do Amazonas com Roraima, os waimiri-atroaris suspenderam a vigilância da BR-174 (Manaus-Boa Vista), que corta o território.
Desconfiados do presidente Jair Bolsonaro, visto como um inimigo, indígenas da Amazônia estão adotando medidas contra o avanço do novo coronavírus, ao mesmo tempo em que cobram ações específicas da governo federal, incluindo o combate ao garimpo ilegal.
“Temos esse passado em que as epidemias dizimaram povos indígenas, que até hoje não se recuperaram. As comunidades não querem mais passar por isso”, afirma Ianukula Kaiabi Suia, presidente da Associação Terra Indígena do Xingu (Atix), que reúne 7.500 pessoas entre 16 povos, em Mato Grosso.
Nesta terça-feira (31), uma agente de saúde de 20 anos do povo kokama foi confirmada como o primeiro indígena do país infectado pela Covid-19. Ironicamente, a jovem foi contaminada por um médico recém-chegado do Paraná, pela Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), vinculada ao Ministério da Saúde. Ela trabalha na área urbana de Santo Antônio do Içá (AM), onde está isolada.
A principal medida até agora tem sido bloquear a entrada de não indígenas. Na Raposa Serra do Sol, em outras terras indígenas de Roraima e no Território Indígena do Xingu (MT), dezenas de comunidades levantaram barreiras nas últimas semanas para controlar as vias de acesso.
“A nossa preocupação em montar as barreiras foi porque havia muitas pessoas entrando, parecia que tudo estava normal”, afirma Enock Taurepang, coordenador-geral do CIR (Conselho Indígena de Roraima). “Não tem nenhum plano para aparar as comunidades indígenas, temos governos que não priorizam a saúde dos povos indígenas.”
Entre as medidas adotadas pelo CIR estão a suspensão de eventos, viagens e atividades internas, a distribuição de informação nas comunidades sobre o novo coronavírus e uma campanha para arrecadar alimento e material de limpeza.
Na divisa entre Amazonas e Roraima, os waimiri-atroaris se retiraram das duas barreiras que controlavam, durante a noite, o tráfego de veículos pela rodovia que atravessa seu território. O objetivo é reduzir ao máximo o contato com não indígenas, diminuindo assim as chances de contágio.
No Congresso, a única deputada federal indígena, Joênia Wapichana (Rede-RR), tem defendido que os indígenas sejam contemplados pelos projetos que atendem as populações mais vulneráveis, incluindo a ajuda emergencial de R$ 600.
A Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, coordenada por Joênia, também exige a aquisição de testes rápidos pela Sesai e a antecipação da vacinação contra gripe nos povos indígenas.
Nesta quinta-feira, o Ministério Público Federal (MPF) afirmou que os indígenas enfrentam um “cenário de risco de genocídio” e pediu que a Funai adote medidas de restrição de acesso a terras indígenas e que a Sesai crie espaços de quarentena para casos suspeitos ou confirmados em cidades, entre outras propostas.
Uma das principais preocupações é a entrada de garimpeiros ilegais em seus territórios, fluxo que, segundo as lideranças, aumentou nos últimos meses com a alta no preço do ouro e as promessas de regularização por Bolsonaro.
Nesta quarta-feira (1º), indígenas desmantelaram por conta própria um garimpo ilegal que atuava no rio Cotingo, dentro da TI Raposa Serra do Sol. Quatro garimpeiros não indígenas foram detidos e liberados em seguida, segundo o CIR.
“Realmente, a gente está preocupado porque eles são muitos. Vamos até fechar um rio pra poder diminuir e pedir pro pessoal parar um pouco nestes dias”, diz Arnaldo Kaba, cacique-geral dos mundurucus, povo de cerca de 14 mil pessoas, a maioria morando no sudoeste do Pará, além de Mato Grosso e Amazonas.
Kaba diz que o garimpo ilegal na Terra Indígena Munduruku está aumentando e vem pedindo ajuda à Funai, ao Ibama e ao ICMBio para expulsar centenas de garimpeiros não indígenas, sem resultado.
O fluxo constante entre a aldeias e cidades dos próprios indígenas, muitos deles estudantes, também preocupa as lideranças. De acordo com o Censo 2010 do IBGE, 42% dos indígenas moram fora de seus territórios. Na época, o país contava 896.917 indígenas, ou 0,4% da população.
No Xingu, afirma Suia, a Atix, em parceria com a Sesai, orientou os indígenas fazer uma quarentena antes de voltar para casa: “Ficaram um tempo na cidade e, à medida que cumpriam os prazos estabelecidos pelo Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena) do Xingu, foram entrando nas aldeias”.
Em entrevista à Folha, o secretário nacional da Sesai, Robson Santos da Silva, afirmou que o Ministério da Saúde considera toda a população indígena como grupo de risco para as infeções respiratórias agudas, como a Covid-19.
“Desde janeiro, antes mesmo de a OMS declarar a Covid-19 como pandemia, estamos emitindo documentos com orientações aos distritos, incluindo medidas preventivas e de contenção do contágio”, disse. “A principal iniciativa foi o Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo Novo Coronavírus em Povos Indígenas, que contém todas as providências que precisam ser tomadas para evitar a chegada do coronavírus aos povos indígenas”, completou.
Questionado sobre o caso de Santo Antônio do Içá, disse que “a ação rápida do Dsei foi fundamental para evitar a disseminação do vírus na aldeia” e que todos os que tiveram contato com o médico foram colocados em isolamento.
Com relação aos garimpeiros, disse que “a presença de não indígenas nessas áreas é sempre motivo de preocupação. Nesse contexto, a Sesai tem feito articulações com outros órgãos e Ministério da Justiça”.
Silva afirma ainda que a Sesai já reocupou praticamente todas as vagas abertas pela saída dos médicos cubanos, no final de 2018. “A Sesai mantém 448 médicos atuando nos 34 Dseis. Mais de 70% deles são do Programa Mais Médicos —379 vagas, sendo que 337 estão preenchidas.”
Sobre as iniciativas dos indígenas, disse: “Ações independentes seguindo as orientações e protocolos do Ministério da Saúde podem ajudar sim. Desde que, neste momento, não promovam aglomerações ou contato de não indígenas com indígenas, o trabalho será bem-vindo”
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