Sterlin Harjo teve um grande ano. Em agosto, o canal FX lançou no serviço de streaming Hulu a série “Reservation Dogs”, uma elogiada comédia soturna sobre quatro adolescentes indígenas americanos que vivem na região rural do Oklahoma, criação de Harjo e Taika Waititi.
No mês seguinte, Harjo apresentou um dos prêmios na cerimônia do Emmy em companhia dos quatro jovens astros da série. Dois dias antes de conversarmos, “Reservation Dogs” conquistou o Gotham Award como melhor série curta estreante. (Ele imaginava que seria premiado? “Não. Se imaginasse, teria bebido menos vinho”.)
E, para coroar um período de vitórias, a Netflix este mês lançou “Love and Fury”, o segundo documentário de Harjo sobre artistas indígenas americanos tentando levar adiante suas carreiras em seu país e no exterior. O que acontece, o filme interroga, quando eles conduzem a arte nativa a um mundo pós-colonial?
Por cerca de um ano, Harjo e sua equipe acompanharam mais de 20 artistas, muitos dos quais ele já conhecia. Os membros da banda Black Belt Eagle Scout, projeto musical de Katherine Paul, às vezes se hospedam com ele em Tulsa, Oklahoma, quando estão em turnê. Tommy Orange, autor do aclamado “There There”, pediu que Harjo moderasse um evento no qual ele era um dos palestrantes. (Harjo aproveitou e filmou o evento para o documentário.)
E não devemos esquecer que Harjo mesmo é um artista indígena: o cineasta, cujas origens abarcam as nações seminole e muscogee creek, já dirigiu três longas (“Four Sheets to the Wind”, “Barking Water” e “Mekko”) e um documentário (“This May Be the Last Time”), antes de conceber a ideia para “Reservation Dogs” em uma conversa regada a tequila com Waititi.
Esses artistas cruzam as órbitas uns dos outros constantemente e se aproximam cada vez mais. Como ele explicou em uma conversa recente por telefone, Harjo queria expressar essa ideia em seu trabalho, mas pela lente de sua comunidade. Abaixo, trechos editados de nossa conversa.
Por que amor e fúria? Como é que esses dois conceitos se relacionam?
Como artista, acredito que temos, coletivamente, todas essas experiências diferentes e essas formas diferentes de sobrevivência das quais nos originamos. E é possível tomar essa sobrevivência e qualquer forma de opressão e se sentir amargurado, sentir que não existe esperança. Porque alguns de nós perderam seus lugares, alguns de nós perderam sua linguagem, muitos de nós sofreram abusos na escola, muitas coisas aconteceram a nós ao longo da história. Não só na expansão rumo ao oeste. Muitas outras políticas dos Estados Unidos realmente oprimiram nosso povo.
E assim é possível tomar isso tudo e converter em um sentimento de raiva e amargura. Ou apanhar essa raiva e transformá-la em amor e criação. E acredito que seja isso que cada um desses artistas faz. Todos eles estão conectados à comunidade, todos eles têm trabalhos conectados à comunidade; e eles tomam essa história e tentam entendê-la e se expressar de uma maneira com a qual as pessoas possam se conectar. E acredito que isso seja amor.
O último filme que você fez foi em 2015. A sensação é diferente agora, depois de “Reservation Dogs”?
Eu fiz esse trabalho antes de “Reservation Dogs”. Era algo que eu estava fazendo com quase nenhum orçamento, simplesmente pela necessidade de contar uma história que precisava ser contada. A arte contemporânea dos americanos nativos não foi observada ou apresentada da maneira que eu acho que merece. Existe uma visão muito datada do que a arte indígena representa no mundo. Sou amigo de todos esses artistas e conheço artistas desde sempre. Parecia uma oportunidade de mostrar esse mundo que ainda não tinha sido visto e de reenquadrar a arte indígena.
Eu queria que a narrativa se expandisse organicamente e, por isso, se estava filmando um artista e encontrava um ou dois outros, os acompanhava e fazia coisas com eles.
Fiz muitos documentários nos quais assumo o papel de entrevistador invisível, com imagens de segunda unidade rolando em câmera lenta, e isso é ótimo. Mas eu queria fazer algo diferente. Por isso, propositadamente evitei fazer muitas entrevistas convencionais. Estudei bastante os filmes de Les Blank, especificamente ‘A Poem Is a Naked Person’, sobre [o músico e compositor] Leon Russell. Mas se você assiste ao filme, percebe que ele é na verdade sobre aquela era [o começo da década de 1970].
Vimos um documentário chamado ‘Heartworn Highways’, sobre Guy Clark e Townes Van Zandt, Steve Earle, no começo da década de 1970. E era exatamente o que o título diz: um documento visual sobre o que estava acontecendo. Era o que eu queria fazer nesse projeto, filmar pessoas fazendo o que elas fazem.
Você começou tendo em mente pessoas específicas para acompanhar?
Sim, originalmente pensei [no cantor] Micah Hinson, [no artista interdisciplinar] Cannupa Hanska Luger, [na pintora] Haley Greenfeather English e em minha amiga Penny Pitchlynn, da banda Labrys. A turnê dela não rolou e por isso não viajei em sua companhia. Ela continua no filme, mas [a dançarina] Emily Johnson se tornou uma parte mais importante do documentário. E eu realmente os acompanhei, e aí expandi o material organicamente à medida que eles entravam em contato com outras pessoas.
Você já dirigiu três longas e dois documentários. Há a mesma liberdade artística em um documentário do que em um filme de ficção?
Não há, mas creio que seja só uma forma diferente de contar uma história; gosto dos limites que um documentário cria. Em “Love and Fury”, estabeleço regras para cada personagem que esteja diante da câmera, o que me inclui, e instruo que a pessoa se comporte como se fosse a única pessoa sendo filmada, como se estivéssemos na década de 1970 e só tivéssemos uma câmera. Se as pessoas com quem trabalho não sacarem a ideia, ninguém mais vai entender.
Gravamos tudo com lentes zoom. Assim, em lugar de cortar e mudar o enquadramento, usamos o zoom para aproximação e para tomadas mais abertas. A ideia era agir como se não fôssemos editar. Por isso, nada de zooms rápidos; a mudança de foco precisa ser fluida para que eu possa mantê-la no filme. Amo trabalhar assim porque é um desafio. E é muito diferente do controle que você tem sobre uma narrativa. Há algo nesse desafio que realmente me interessa como contador de histórias.
O que você acha que seu documentário e os artistas que ele destaca têm a dizer sobre persistência?
Todos eles trabalham há muitos anos. E no momento vivemos um período e eu também o vivo, no qual as pessoas querem prestar atenção à arte e às histórias indígenas e se fala em inclusão e diversidade. Creio que todos eles continuariam trabalhando, mesmo sem dinheiro ou a garantia de que possam ter carreiras. E o fato de que tenham batalhado e continuem a batalhar até hoje é um testemunho de sua persistência pessoal e da persistência de seu povo. Acho que é isso que nos move: nosso povo sobreviveu a muita coisa e nossa persistência neste mundo está conectada a isso.
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