Cassiana Der Haroutiounian

“Vocês nascem em árvores?!” perguntou uma criança a Ailton Krenak durante uma palestra em uma escola.

Assim começou o papo com uma das maiores lideranças indígenas do país e com dois artistas ganhadores do prêmio Pipa: Denilson Baniwa, do Rio Negro, e Arissana Pataxó, de Porto Seguro. Entre algumas risadas e brincadeiras pelo caminho, a fantasia sobre o indígena permeou nossa conversa do começo ao fim. Parece que são tantos os estereótipos sobre ser índio que as pessoas deixam de ver e de enxergar os indivíduos Ailton, Denilson e Arissana.

Karajás, de Denilson Baniwa

“Tem tanta fantasia sobre esse lugar não existente, esses caras (colonizadores portugueses) conseguiram inaugurar uma ontologia do nada, jogaram a gente nesse buraco negro onde a última estrela explodiu e existe uma idealização de que é pra você ser limpo, ser puro, ingênuo e desaparecer… sendo tudo o que os brancos não conseguem ser”, comentou Krenak. Toda literatura romântica é baseada numa história desse índio que não existe. A sociedade insiste em tratá-los como uma grande massa, numa unicidade insubstituível do indivíduo: “A gente é uma criação. As metáforas todas não deixaram espaço para o índio existir e ser.”

Arissana Pataxó

Com uma ancestralidade enraizada e latente, ligada à história de um povo, com suas visões de mundo, maneiras de se conectar com o entorno, ligados a terra e ao cosmos,  utilizam da tecnologia do homem branco para fortalecer seus ideias e a cultura indígena, sem se afastar dela. Pelo contrário, conseguem ecoar suas histórias em mais vozes, em mais lugares, propondo mudanças de forma plural e atingindo mais e mais pessoas dessa humanidade tão segmentada que o homem branco ocidental criou. Os indígenas são pessoas capazes de ouvir a natureza, de perceber as mudanças e prestar atenção aos sinais.

Arissana Pataxó

Talvez o homem branco não saiba ver o mundo de forma holística, mas de maneira compartimentada, individualizada, sempre preocupado com o próprio umbigo. Ter mais dinheiro, mais posses, mais visibilidade e mais chances de fugir para outro lugar se tudo der errado. Homem que destrói a natureza a sua volta sem perceber que é parte dela, que mata, que aplaude a destruição ao invés de abrir mão de sua ambição descabida, que a cada dia que passa se desconecta da natureza, cavando um abismo de olhos abertos, devastando o planeta.

Monalisa Kunhã, de Denilson Baniwa

Os povos indígenas, com toda a bagagem que carregam, utilizam a arte – -artes plásticas, cinema, teatro, fotografia etc. –  com uma intenção política, nunca destituída de sentido. Arte essa que sempre existiu, mesmo antes de ganhar o rótulo de “contemporânea”. Denilson e Arissana resgatam e reinventam a arte com a memória para comunicarem ao mundo sua história, estando no radar da arte contemporânea.

Voyeurs, de Denilson Baniwa

Para Krenak, as pessoas transformaram a arte dos povos originários em objeto de consumo. “Inclusive a gente tem que ficar à vontade e não tentar controlar nada porque qualquer ideia de controle é besteira nesse mundo”. Parece mesmo que perdemos o chão sob nossos pés.

“Entre tantas fantasias, o que é ser índio pra você?”, Perguntou Arissana em uma de suas emblemáticas obras.

Arissana Pataxó

“Ser índio pra mim, no lugar que estou agora, é carregar toda uma ancestralidade anterior a este planeta e entender o mundo moderno como um lugar que eu posso transitar livre e, inclusive mesclar, o mundo tradicional – meu povo – e o mundo moderno. Transitar pelos dois mundos como meus mundos e trazer coisa de um ao outro que ajude. Por exemplo, usar a tecnologia para divulgar a cultura do meu povo e também para defendê-lo. Ser indígena, além de ser um ato coletivo, existe a particularidade de cada pessoa e a construção deste modo de vida, de onde construiu a sua memória”, relata Denilson.

Cunhatain Antropofagia musical, de Denilson Baniwa

“Muitos dos trabalhos trazem marcas da minha vivência e do meu cotidiano, dos meus convívios. Percebi, chegando em Salvador, coisas que acontecem e mostram como a sociedade extinguiu por completo os povos indígenas e sem nem imaginar a existência deles. Por exemplo, no meu colégio usavam muito da conjugação do passado para falar dos índios. As crianças hoje também crescem ouvindo isso. E elas nunca vão imaginar que ainda exista povos indígenas. Minha obra vem um pouco para trazer todas essas existências à tona.” reflete Arissana.

Arissana Pataxó

“A Terra – este planeta que era o paraíso, mas não o paraíso cristão – é maravilhosa e está virando esse buraco negro que nunca foi. Buraco negro é a cabeça dessas pessoas que governam o mundo. Eles têm uma distopia, uma ausência de pensar mundos melhores e uma insistência em pensar buracos negros. A Terra deveria ser um lugar que essa humanidade plural andasse com cuidado pelo chão.” Alguns especialistas dizem que paramos de ver o paraíso desenvolvemos a agricultura, mas será?! Segundo Krenak, sendo bem radical, “o paraíso deixou de existir quando esse homo sapiens traiu a evolução que podia ter sido plural e decidiu que só ele podia existir”. Era um planeta maravilhoso aquele que a humanidade deveria ter andado com cuidado ao pisar no chão.

Criação do Universo, de Denilson Baniwa

Uma humanidade plural desconectada da natureza e da sintonia com a terra que exclui uma variedade de povos que vivem agarradas à terra, a seus lugares de origem. Povos que carregam uma memória ancestral em seu DNA. Que humanidade é essa que construiu fronteiras imensas entre um povo e outro passando por cima de cada indivíduo?

Antropofagia musical, de Denilson Baniwa

“Nós crescemos com uma democracia imaginária e esquecemos de fortalecer essa democracia. Tinha uma coisa que vibrava muito embaixo dessa camada de democracia que não conseguimos enterrar completamente e veio o governo atual e cavou esse lugar e explodiu de novo. De certa maneira esse governo veio escancarar muito do que estava latente ali. A gente achou que o Brasil estava perfeito e todos os racistas e nazis estavam ali se preparando. Era o Brasil que estava tímido e precisava de uma faísca para trazer tudo isso à tona. Brasil é agressor, escravizador, racista, machista. Ele, Bolsonaro, personificou e normalizou tudo isso”, refletiu Denílson Baniwa.

Denilson Baniwa

Infelizmente, essa faísca sobre a qual Denilson se referiu não só trouxe à tona o pior que a civilização ocidental já produziu, mas também colocou fogo nas matas e florestas desta terra. Engana-se quem pensa que são fenômenos separados. O discurso de ódio atual legitima a violência contra os povos indígenas e a natureza, com um discurso desenvolvimentista vazio que acredita que tudo pode ser ocupado, dominado, conquistado e explorado. A floresta deve virar pasto e plantação. O indígena deve ser “integrado” à sociedade. Os que pensam assim esquecem que a floresta queimada para dar lugar a bois e soja é a casa de todos nós. Esquecem que os indígenas não devem ser “integrados” à sociedade, mas eles são a sociedade! Sociedade essa que deveríamos olhar como quem olha para um espelho, na esperança de ver um ‘eu’ melhor no ‘outro, um outro ‘eu’ possível.

** Para saber mais sobre a situação dos povos indígenas da Amazônia e ajudar a combater a COVID-19 por lá, acesse: www.uniaoamazoniaviva.com

 

 

Fonte: https://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2020/10/01/voces-nascem-em-arvores-um-papo-com-ailton-krenak-denilson-baniwa-e-arissana-pataxo/

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