Carta de 1988 deu aos povos indígenas o direito à autodeterminação, até aqui parâmetro único no reconhecimento
Por meio de uma resolução que entrou em vigor em 1º de fevereiro, a Funai (Fundação Nacional do Índio) mudou os critérios para definir quem é índio ou não.
O MPF (Ministério Público Federal) afirma que a mudança contraria a Constituição. Entidades que atuam na proteção dos povos indígenas também reagiram ao ato, por entender que as novas regras, mais restritivas, embutem o objetivo de subtrair direitos adquiridos.
A Constituição de 1988 deu aos povos indígenas o direito à autodeterminação, até aqui o critério único no reconhecimento de alguém como integrante desta parcela da população.
Sob a justificativa de proteger os grupos indígenas para fins de políticas públicas, a Funai baixou a resolução com novos critérios para determinar quem ao grupo pertence.
Passaram a ser critérios: “I – Vínculo histórico e tradicional de ocupação ou habitação entre a etnia e algum ponto do território soberano brasileiro”.
“II – Consciência íntima declarada sobre ser índio (que é a autodeclaração).”
“III – Origem e ascendência pré-colombiana (existente o critério I, haverá esse requisito aqui assinalado, uma vez que o Brasil se insere na própria territorialidade pré-colombiana).”
“IV – Identificação do indivíduo por grupo étnico existente, conforme definição lastreada em critérios técnicos/científicos, e cujas características culturais sejam distintas daquelas presentes na sociedade não índia.”
Em nota técnica divulgada nesta quinta-feira (4), os subprocuradores da República que atuam no grupo encarregado de acompanhar o tema populações indígenas e comunidades tradicionais no âmbito da Procuradoria recomendaram à fundação a revogação da norma.
De acordo com os representantes do MPF, a Constituição reconheceu aos povos indígenas o direito à autodeterminação, o que lhes assegura autonomia sobre sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e o direito sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
A Procuradoria afirma que as razões da Funai quanto à necessidade de proteger a identidade indígena e evitar fraudes na obtenção de benefícios sociais não podem ser usados para tirar desses povos o direito fundamental de se afirmarem como tais.
“Não há razão alguma para a criação de nova normativa, considerando que se trata matéria afeita aos valores, práticas e instituições das coletividades indígenas”, afirmam os seis subprocuradores que assinam a nota técnica.
O grupo entende que a iniciativa da Funai, classificada de “intervenção infundada”, é ainda mais grave no atual contexto da pandemia da Covid-19.
Há, na visão da Procuradoria, risco de que a resolução questionada leve a uma eventual subtração de direitos já consolidados.
O MPF lembra que a OIT (Organização Internacional do Trabalho), por meio de convenção, estabeleceu que “a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental” para determinar quem pertence ao povo indígena.
Na avaliação da área jurídica do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), a Funai pretendeu, com a resolução, “voltar a definir quem é ou não indígena, num retorno ao regime jurídico da tutela que embasava a atuação estatal” antes da Constituição de 1988.
“[A Funai quer] tornar uniforme uma política integracionista, para mais uma vez extirpar, como ocorreu em especial no período da ditadura militar, direitos dos índios”, afirma o Cimi.
Ao avaliar que a resolução torna mais difícil o reconhecimento das pessoas como pertencentes a povos indígenas, o Cimi afirmou que a medida pode excluir metade da população autodeclarada indígena de diversas políticas públicas.
A Funai disse que a resolução tem respaldo jurídico e se baseia em estudos realizados em todo o país. Segundo o presidente da fundação, Marcelo Xavier, a medida visou evitar “uma banalização da identidade indígena”.
“O sentimento de pertinência ou o direito de uma pessoa sentir-se indígena não há de ser negado, contudo, o fato jurídico apto a gerar direitos aos indígenas depende de critérios que precisam ser minimamente definidos”, afirmou Xavier.
Para o representante da Funai, é necessário “o aclaramento desses critérios”, sob pena de tornar “trivial e fútil a identificação indígena, diminuindo-lhe o valor”.
O presidente disse que a norma que entrou em vigou no início do mês contribui para evitar fraudes e abusos que poderiam subverter a função social decorrente da identidade indígena.
“Queremos evitar que oportunistas, sem qualquer identificação étnica com a causa indígena, tenham acesso a territorialidade ou a algum benefício social ou econômico do governo federal”, disse.
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