Em São Gabriel da Cachoeira, lideranças do povo Dâw acreditam que praticamente toda a população, de 140 pessoas, foi contaminada pela doença

Por Luana Lila

Jair usa suas duas mãos para cobrir a garganta, ao mesmo tempo em que aperta os olhos com força, mostrando que sua garganta “fechou” quando estava infectado com a Covid-19. “Doeu tudo”, diz ele, com a ajuda dos gestos e expressões de dor e desespero.

Segundo as lideranças da comunidade do povo Dâw, a pandemia atingiu praticamente todos os seus 140 moradores.

O povo Dâw, da família linguística Naduhup, vive na comunidade Waruá, localizada na margem direita do Rio Negro, em frente a São Gabriel da Cachoeira (AM), cidade onde a Covid-19 chegou de forma brusca no final de abril.

Com uma história marcada por episódios de violência e exploração devido ao contato com não-indígenas, eles quase foram extintos na década de 1980, chegando a apenas cerca de 60 pessoas. Hoje a população está crescendo e realiza projetos de documentação da cultura e da língua em que a participação dos mais velhos tem sido essencial para a transmissão dos saberes.

“Eles vivem um momento de resgate e reafirmação de seus conhecimentos que agora a pandemia vem ameaçar”, diz Karolin Obert, pesquisadora em linguística que trabalha com o povo Dâw há mais de cinco anos. Segundo ela, o medo da extinção entre eles é real. “Nas histórias que eles contam, as epidemias são uma questão recorrente, então isso acaba remetendo a uma memória traumática em relação a doenças que já foram transmitidas pelos brancos no passado”, diz ela.

A vulnerabilidade deste povo reflete a situação de muitos povos indígenas, que ainda lutam por melhores condições de assistência à saúde e para que seus direitos sejam garantidos de forma efetiva. No dia 8 de julho, o presidente Jair Bolsonaro vetou trechos de projeto de proteção social que obrigava o governo a fornecer água potável, materiais de higiene e leitos hospitalares aos indígenas durante a pandemia.

Jair mostra plantas e o chá utilizado por eles para se recuperar da Covid-19 © Christian Braga / Greenpeace
Jair mostra plantas e o chá utilizado por eles para se recuperar da Covid-19 © Christian Braga / Greenpeace

Devido ao histórico deste povo e à proximidade com a cidade, as notícias sobre a Covid-19 assustaram a população. “Ficamos com muito medo, como se fosse um pânico. Quem passava pela nossa comunidade dizia que a doença era muito forte”, conta Roberto Carlos Fernandes Sanches, professor e liderança no local. “Fiz reunião com o pessoal e falei: vamos ter que sair da comunidade”.

A partir daí, todos os moradores deixaram suas casas para se isolar no interior da floresta, abrigando-se em suas casas de farinha ou construindo malocas de emergência. Alguns abrigos ficavam a aproximadamente 30 minutos de caminhada saindo da comunidade, enquanto outros estavam localizados a cerca de duas horas de distância andando. “Quando fomos para o mato, aqui não ficou ninguém. Ficou triste essa comunidade. De vez em quando eu vinha ligar para a minha filha e [via] só as casas vazias. Eu dizia: poxa, será que meu povo vai morrer?”, lembra, emocionada, Auxiliadora Fernandes da Silva, professora e liderança da comunidade. “Eu não quero que meu povo morra, nenhum, porque meu povo já é pouco”, completa ela.

Conforme relatam as lideranças dos Dâw, as famílias ficaram um mês no interior da mata, mas algumas pessoas passaram a ir a São Gabriel da Cachoeira para buscar mantimentos durante esse período, e o vírus acabou chegando até eles. Roberto Carlos acredita que todos os moradores da comunidade foram infectados. O médico Rafael Huff, do Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Negro (Dsei-ARN), que atende a comunidade, concorda.

“Praticamente 100% da comunidade deve ter sido infectada”, diz. A maioria apresentou sintomas, mas não havia testes suficientes para toda a população. Segundo o médico, foram realizados 25 testes rápidos, sendo que 14 Dâw foram identificados como positivos para a Covid-19. No entanto, ele diz  que não tem como descartar os outros casos por conta da possibilidade dos resultados falsos negativos, que são frequentes nesse tipo de teste, e também devido aos hábitos de vida coletiva da comunidade e à dificuldade de adotar o uso das máscaras de proteção como hábito.

Como liderança, Roberto Carlos procura dar o exemplo em relação ao uso das máscaras, mas reconhece que o desafio é muito grande. “A máscara é muito ruim. A gente obedece, usa, mas não está deixando a gente respirar bem o ar puro que a gente tem aqui”, diz ele.

O Comitê de Enfrentamento e Combate à Covid-19, que está atuando em São Gabriel da Cachoeira, realizou ações de prevenção na comunidade levando produtos de higiene e máscaras de proteção. Também foi realizada a produção de uma cartilha na língua Dâw, com informações sobre a doença.

Apesar do alto índice de contaminação local, até hoje felizmente não houve óbitos entre os indígenas da comunidade. Além do apoio médico do polo base de saúde no local e das ações do Comitê, eles estão se tratando com o uso de chás de ervas e de raízes. “A nossa preocupação era dia e noite e, quando a gente se encontrava, a gente dizia para continuar tomando chá”, lembra Auxiliadora, sobre o período em que eles ficaram isolados no mato.

Jair, que contou como se sentiu quando estava infectado com a doença, também faz questão de mostrar uma garrafa PET de 2 litros com um líquido marrom. Dentro está o chá de ervas, que ele diz que o ajudou a vencer a doença. O médico Rafael também afirma que os chás ajudam no restabelecimento da saúde dos infectados.

Indígenas do povo Dâw usam máscaras para se proteger da Covid-19 © Christian Braga / Greenpeace

Apesar da recuperação dos acometidos pela Covid-19, o medo de que o povo Dâw deixe de existir devido à pandemia continua vivo entre as lideranças. “Se a doença [nos] matasse, [a gente] ia diminuir mais, por isso peço para as autoridades para ter mais atenção com o nosso povo”, afirma Roberto Carlos. Ele segue aguardando a oportunidade de poder testar a comunidade e assim comprovar quantas pessoas do povo Dâw efetivamente contraíram a doença. Também pede por melhores condições no atendimento à saúde para seu povo.

 

 

 

Fonte: https://www.greenpeace.org/brasil/florestas/com-avanco-da-covid-19-povo-indigena-se-refugia-na-floresta/

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