Durante oficina de trabalho, Agentes Indígenas de Manejo Ambiental da região chamaram atenção para o longo verão entre agosto e novembro

Equipe ISA/Tiquié

Elaboração da representação do calendário circular dos povos Tukano do Rio Tiquié durante oficina na comunidade Boca da Estrada (AM) 📷 Equipe ISA/Tiquié

O começo do mês de novembro é o início do ciclo anual no calendário dos povos Tukano do Rio Tiquié. O principal marcador desse período é a localização no poente, ao anoitecer, da grande constelação da Jararaca (que corresponde parcialmente ao Escorpião dos gregos). 

A caída da Jararaca, como dizem no Tiquié, acontece com um repiquete do rio, uma enchente que recebe o nome da constelação, conhecida mais amplamente no rio Negro e até no Solimões como Boiuaçu (cobra grande). 

Nesse ano, essas chuvas e a crescida do rio foram muito aguardadas, já que foi antecedida por três longos meses de chuvas escassas, em um verão extremo para essa região que registra dos mais altos índices pluviométricos da Amazônia.

O verão amazônico começou em agosto, quando o rio secou fortemente. Com chuvas ocasionais, predominaram dias de sol e calor intenso, mantendo o rio seco. Com isso, a navegação ficou mais difícil e os deslocamentos entre as comunidades e para a cidade de São Gabriel da Cachoeira, mais demorados. 

Leia também: Constelação Boiuaçu ‘cai’ e dá pausa à estiagem, mas nível do Rio Negro continua baixo

Reunidos na comunidade Boca da Estrada, no médio Rio Tiquié, entre os dias 25 e 31 de outubro, os dezoito Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (AIMAs) dessa região se debruçaram sobre suas anotações diárias para elaborar o ciclo anual que estava em seus últimos dias.

A oficina contou ainda com a presença de 70 pessoas da comunidade, em sua maioria estudantes do ensino médio e fundamental e seus professores, que acompanharam e elaboraram sua versão do calendário anual. 

Também serviram de referências as medições de pluviometria e nível do rio das estações do Serviço Geológico do Brasil que existem nas comunidades de Taracuá, Pirarara e Cunuri. 

Com esse material, foram escritos resumos de cada estação do ano, compreendido entre novembro de 2022 e outubro de 2023, assim como um desenho circular que integra os diversos temas observados e registrados: 1. Calendário agrícola; 2. Fenologia de plantas silvestres (aquelas que produzem frutos consumidos por pessoas, peixes e animais) e cultivadas; 3. Reprodução e migração de peixes, animais de pêlo e aves; 4. Realização de rituais e festas; 5. Doenças sazonais; 6. Chuvas e verões (que são identificáveis por nomes específicos nas línguas indígenas). 

Damião Barbosa, AIMA da comunidade São Felipe, apresenta o ciclo anual para alunos e professores do ensino fundamental e médio da comunidade Boca da Estrada
Damião Barbosa, AIMA da comunidade São Felipe, apresenta o ciclo anual para alunos e professores do ensino fundamental e médio da comunidade Boca da Estrada 📷 Equipe ISA/Tiquié

Este trabalho faz parte da rotina dos AIMAs, que têm suas observações e conversas anotadas diariamente para serem compartilhadas e organizadas em oficinas de trabalho, que acontecem três vezes ao ano. A descrição completa do ano será publicada no número 6 da revista Aru.

Nessas oficinas é feito um esforço intercultural de interpretação do ciclo anual, entre os diferentes povos presentes no Tiquié e com a equipe do ISA.

Além dos diários e observações dos AIMAs, os conhecedores mais velhos, que  contribuem para a formação dos AIMAs nos conhecimentos próprios, são convidados a participar e trazer sua colaboração. Ensinam, por exemplo, formas especializadas de manejo do mundo através da proteção e cura das épocas. 

Num relato sobre o verão dos últimos meses, os conhecedores falaram da importância de ahkó bahtó, traduzido como um espelho (ou fonte) de água que impede os rios de secar completamente.

Os AIMAs estão sendo formados como conhecedores dos encantamentos que favorecem o bem-estar e a saúde das pessoas, de seus territórios, os seres que vivem nele, sejam visíveis ou não, e com os quais a todo o tempo estão interagindo.

No encontro em Boca da Estrada, além do verão prolongado e do calor intenso, também saltava aos olhos a profusão de florações das árvores frutíferas nas beiras do rio. São florações de japurá, uacu, cunuri e outras espécies conhecidas por seus nomes locais (theõ, wapekarã, heupu, kerõ). 

Segundo os conhecedores, as flores que caem apodrecem no solo dos igapós e das beiras de rios e igarapés. Esse material é depois lavado pelas chuvas e carregado para as águas do rio. 

Para que não faça mal para as pessoas, é preciso protegê-las com os benzimentos apropriados, que dissipam os venenos das flores  – que é caxiri (bebida fermentada consumida nas festas) para a gente-peixe (waimasa), porém, tóxico para as pessoas. 

Sem esse benzimento do mundo, as pessoas ficam suscetíveis às doenças do tempo, conhecidas por seus nomes em tukano e nas outras línguas indígenas.

AIMAs organizam e resumem as informações de seus diários
AIMAs organizam e resumem as informações de seus diários 📷 Equipe ISA/Tiquié
Desenho do ciclo anual com destaque para floração
Desenho do ciclo anual com destaque para floraçãoEquipe ISA/Tiquié

Embora o verão seja bem-vindo no calendário agrícola, permitindo às famílias a queima de áreas (geralmente cerca de meio hectare) de mata derrubada para novos roçados, acaba por trazer mais prejuízos do que benefícios quando mais prolongado e intenso.

As plantas cultivadas secam e morrem, especialmente as mais novas, e o trabalho nas roças se torna penoso pelo calor, de modo que não é possível fazê-lo durante as horas mais quentes, que são muitas. 

A comunidade diz que o dia já amanhece quente; e o solo, ressecado pela ausência de chuvas, aumenta o risco de incêndios.

Roberval Pedrosa, AIMA da comunidade Serra de Mucura, conta que no dia 13/09, a mais de duas semanas de verão, os cultivos se ressentiram da seca.

“Fui na roça ajudar minha esposa a botar mandioca mole e fazer algum fogo para plantar banana, e as manivas estão secando muito, e ela ficou triste por isso. O tempo deu muito verão”.

No dia seguinte, ele relata: “O tempo deu muito verão com vento, por isso meu cunhado queimou uma roça de capoeira baixa”.

Completadas três semanas de verão, ele registra que “o rio secou muito e tempo deu muito verão com canto de dari-dari, sararoa, bioindicadores do verão de lagartas (Ñia kuma)”. 

No dia 25/09, o irmão de Roberval “queimou roça de mata primária”, vegetação que requer mais dias de verão para queimar bem. 

Depois de mais de um mês seco, ele comentou: “as borboletas de várias cores estão migrando, também mariposas, gafanhotos e cigarras. Doença tem malária, diarreia, gripe e abcessos. Neste ano o verão está muito intenso, fazendo igarapés ficarem parados, com morte de diversas espécies de peixes”.

No dia 04/10, uma simples queima de capim saiu do controle e passou para o mato, montanha acima, e se estendeu por quatro dias.

“Hoje a Serra de Mucura continua queimando muito no topo, sem parar as chamas na mata, a comunidade ficou totalmente cheia de fumaça. O tempo deu muito verão, o poço de tirar água secou, ficou água empoçada, e agora iremos carregar água para beber no caminho da roça. O rio também continua seco e de noite dá muito calor, mesmo para quem não tem parede (na casa)”.

Oscarina Caldas, AIMA e agricultora de Acará-Poço, não muito distante de Serra de Mucura, traz mais detalhes sobre as consequências do clima para as plantas cultivadas. Observa que depois desses meses de verão e poucas chuvas, as mandiocas secaram e apodreceram. Com as ventanias, a planta, que já está mais fraca, cai. 

Também secaram carás e pimenteiras, perdendo as folhas. Agosto é o período de derrubada de áreas de mata primária para novos roçados, a queima acontece entre setembro e outubro, no verão de Ñia, que são lagartas que aparecem muito raramente nos cunurizeiros. Nesse ano, com fartos verões, todas as áreas foram queimadas satisfatoriamente.

Durante a oficina, naquela última semana de outubro, a enchente de Jararaca ainda não havia caído, mas estava sendo aguardada para os próximos dias. Os dias foram quentes e o rio estava bem baixo, e sua água, morna. Mas já a partir do dia 31 veio o repiquete da Jararaca e o rio subiu rapidamente. No dia 10 de novembro, com o nível do rio já cerca de três metros mais alto, já começaram as piracemas de peixes como o aracu-riscado em alguns pontos do rio, recomeçando um novo ciclo para as comunidades do Rio Tiquié.

Fonte: https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/ano-seco-surpreende-moradores-do-rio-tiquie-no-amazonas

Thank you for your upload