Após anos de monitoramento, pesquisadores independentes estabelecem vazão necessária para reprodução de peixes e aguardam posicionamento do Ibama em mais um capítulo de guerra judicial
Clara Roman – Jornalista do ISA
Indígenas e ribeirinhos apresentaram ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) uma proposta para que a Usina Hidrelétrica de Belo Monte libere água suficiente para a manutenção da vida na região. O órgão ainda não se manifestou, mas deve fazê-lo a qualquer momento.
Chamada de Hidrograma Piracema, a proposta apresentada é a primeira que considera critérios ecológicos para definir as quantidades de água liberadas de acordo com cada período do ano e respeita as áreas de reprodução dos peixes e tracajás, as piracemas.
“Quem sabe quando a água precisa chegar? Quem sabe quanta água precisa chegar? Juruna sabem, tracajás sabem, pacus sabem, curimatás sabem, ribeirinhos sabem”, afirma a pesquisadora local Sara Rodrigues Lima, em parecer do Monitoramento Ambiental Territorial Independente da Volta Grande do Xingu (MATI-VGX). “Essas existências sabem e já está na hora de serem ouvidas”. Acesse aqui.
Oito anos de estudo
O hidrograma sugerido pelas comunidades locais é fundamentado no monitoramento minucioso das piracemas e dos impactos causados pela alteração no fluxo da água. Esse monitoramento independente é feito desde 2014 por pesquisadores indígenas e não indígenas, e foi uma saída para se contrapor ao monitoramento pouco preciso que a Norte Energia faz da região.
O Hidrograma Piracema estabelece não só números para a vazão de água, mas o período do ano que cada vazão é necessária. Outro ponto importante é que ele estabelece que as alterações do fluxo do rio devem ser graduais, tanto na cheia quanto na vazante, tentando aproximar o pulso artificial do pulso natural do rio. Nos hidrogramas A e B propostos pela Norte Energia, as variações são abruptas e sem qualquer conexão com os tempos da natureza.
Apesar de considerar critérios ecológicos, o Hidrograma Piracema é uma proposta de consenso. Os povos da região tiveram que abrir mão de algumas espécies de peixes, tracajás e de vegetação nativa, já que a quantidade de água liberada ainda será bem menor do que o fluxo natural do rio.
Historicamente, a vazão do rio começa a reduzir em maio, quando inicia a seca, e chega a um mínimo em setembro. A partir de outubro, quando volta a chover, o rio começa a subir de novo. Tanto o processo de cheia quanto de seca são graduais: a água vai reduzindo ou aumentando mês a mês. Com a instalação da hidrelétrica, esse ritmo natural e sutil foi substituído por um fluxo mecânico.
Da noite para o dia, grandes quantidades de água eram barradas ou liberadas, de acordo com as necessidades da hidrelétrica. Muitos peixes e tracajás morreram. Os Juruna também relatam que encontravam muitos peixes com ovas secas em sua barriga. Isso porque essa inundação e redução instantâneas criavam uma situação de estresse para os peixes e eles simplesmente não conseguiam desovar. As fêmeas morriam com as ovas secas, num cenário de catástrofe ambiental.
“É como uma mulher que tem dentro dela um bebê morto. Conseguem perceber a importância das piracemas?”, questiona Josiel Juruna, coordenador do Monitoramento Independente. Em junho de 2022, pesquisadores locais encontraram curimatás que perderam a época da desova, realizada normalmente entre os meses de janeiro e fevereiro, porque o volume de água liberado não garantia segurança para as fêmeas e suas ovas.
No mês de dezembro, quando a enchente é chave para que as fêmeas se sintam confortáveis para entrar na piracema e iniciar a desova, os volumes liberados pela Norte Energia (uma média de 967 m3/s) foram três vezes menores ao proposto pelo Hidrograma Piracema e quatro vezes menores que a média histórica do rio Xingu, antes da construção e operação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Níveis tão baixos impossibilitam a manutenção da vida na região.
No Hidrograma Piracema, o fluxo de água começa a aumentar sutilmente a partir de outubro, tendo um aumento mais substancial em novembro e uma elevação gradual até abril, quando começa a baixar. Isso permite a inundação de várias piracemas no período de reprodução de algumas espécies. Outras serão sacrificadas, e suas áreas de reprodução não serão alagadas, causando sua extinção. Neste mapa, é possível aumentar e reduzir a vazão e entender qual o alagamento que isso gera.
A vazão de vazante (quando a água começa a baixar) precisa ocorrer de forma gradual para garantir o desenvolvimento dos filhotes de peixes dentro dos igapós e lagos. O peixe recém-nascido precisa de cerca de três meses para se desenvolver em águas calmas, e precisa, da mesma forma, do fluxo da água baixando para conseguir aproveitar a correnteza gerada por essa mudança e se deslocar novamente da piracema para o leito do rio.
Além disso, o nível de alagamento de pelo menos parte do igapós deve ser atingido durante o período de frutificação de suas árvores. Dessa forma, os frutos caem nas águas alagadas e servem de alimento para as espécies aquáticas. Nos últimos anos, esses frutos estão caindo no seco e os peixes e tracajás estão morrendo sem alimento.
“A Norte Energia continua a defender os hidrogramas A e B, ignorando um parecer do Ibama que mostra que esses fluxos são impraticáveis. Do outro lado, tem uma alternativa fundamentada em critérios ecológicos transparentes. O órgão vai ter que escolher por algum deles, ou por um terceiro, mas independente da decisão, vai ter que motivar tecnicamente sua decisão”, afirma Biviany Rojas, pesquisadora do Instituto Socioambiental (ISA).
“Se não mudarmos o rumo das coisas, a Volta Grande vai ser um grande cemitério de gente e de peixe”, conclui a pesquisadora Sara Rodrigues Lima.-
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