Para ambientalistas, proposta é a pior e mais radical já apresentada no Congresso. Texto prevê generalização de licença autodeclaratória. Votação de destaques está prevista para manhã desta quinta

 

Reportagem e edição: Oswaldo Braga de Souza
Texto atualizado às 9:50 de 13/5/2021

O plenário da Câmara aprovou, na madrugada desta quinta (13), por 300 votos contra 122, o texto principal do relatório do deputado Neri Geller (PP-MT) sobre o Projeto de Lei (PL) nº 3.729/2004, da Lei Geral do Licenciamento Ambiental. A votação dos destaques está prevista para às 10h desta quinta-feira.

O PL restringe, enfraquece ou, em alguns casos, até extingue parte importante dos instrumentos de avaliação, prevenção e controle de impactos socioambientais de obras e atividades econômicas no país. Trata-se da pior e mais radical proposta já elaborada no Congresso sobre o assunto e que, na prática, torna o licenciamento convencional uma exceção, na avaliação da Frente Parlamentar Ambientalista, de pesquisadores e organizações da sociedade civil.

Para eles, se transformado em lei, o projeto pode produzir recordes de desmatamento em série, em especial por eliminar restrições à destruição da floresta, em geral estimulada por grandes obras de infraestrutura na Amazônia, como estradas e hidrelétricas.

O parecer não foi debatido publicamente dentro ou fora do Congresso. O documento foi repassado a alguns deputados só no final da semana passada. Ontem, em plena votação, parlamentares reclamaram por não ter conhecimento do texto, elaborado a portas fechadas por ruralistas, a Casa Civil e o lobby de grandes indústrias e empresas de infraestrutura.

Com apoio do “Centrão” e de bolsonaristas, a bancada ruralista derrotou, um a um, os requerimentos apresentados pela oposição e os parlamentares ambientalistas para obstruir a votação ao longo de parte da tarde e da noite. O texto de Geller foi levado diretamente ao plenário porque teve regime de urgência aprovado em 2017, depois de passar pelas comissões de Agricultura, Meio Ambiente, Finanças e Tributação.

Após apreciação dos destaques, o PL segue para o Senado. Se sofrer mudanças, volta a ser debatido na Câmara, mas apenas as alterações serão analisadas. Se for aprovado pelos senadores como está, segue para sanção presidencial.

Dispensas de licenciamento; licença autodeclaratória

O relatório de Geller dispensa agricultura, pecuária e silvicultura de licenciamento, além de mais 13 tipos de atividades que geram impacto ambiental, como obras de redes de distribuição de energia e de manutenção e melhoramento da infraestrutura em instalações pré-existentes, como dragagens, por exemplo. A Licença por Adesão e Compromisso (LAC), uma espécie de licenciamento autodeclaratório via internet, é generalizada para grande parte dos setores econômicos. O parecer ainda permite que estados e municípios adotem procedimentos próprios, abrindo caminho a uma disputa por quem terá a regra menos restritiva para atrair investimentos e empresas.

Conforme levantamento do ISA, de acordo com a proposta aprovada, 297 Terras Indígenas ou 41% do total de áreas com processos de demarcação já abertos na Fundação Nacional do Índio (Funai) seriam desconsideradas para efeitos de avaliação, prevenção e compensação de impactos socioambientais de empreendimentos econômicos. Isso porque o texto de Geller prevê o licenciamento apenas para territórios já homologados, isto é, com demarcação já concluída, ou com restrição de uso para grupos indígenas isolados.

Algo semelhante aconteceria com os territórios quilombolas. Conforme o texto de Geller, apenas áreas com processo de titulação concluído fariam jus ao licenciamento. Cerca de 84% dos mais de 1.770 processos de oficialização de quilombos já iniciados em âmbito federal, no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), seriam excluídos da análise dos órgãos ambientais.

Igualmente, impactos diretos e indiretos sobre Unidades de Conservação seriam ignorados. Do jeito que foi aprovado, o PL 3.729 obriga limita a manifestação do órgão gestor dessas áreas às situações em que elas estejam na Área Diretamente Afetada por empreendimentos econômicos.

“Texto nefasto”; atraso nas obras

“Provavelmente, com a aprovação desse projeto, o Brasil irá presenciar novos episódios de acidentes socioambientais. Além disso, a medida poderá enfraquecer a segurança jurídica e a judicialização desse importante instrumento ambiental”, informa nota da Frente Parlamentar Ambientalista, coordenada pelo deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP).

“O texto aprovado é tão nefasto que, de uma só vez, põe em risco a Amazônia, demais biomas e os nossos recursos hídricos. Ainda pode resultar no total descontrole de todas as formas de poluição, com prejuízos à vida e à qualidade de vida da população”, critica o consultor jurídico do ISA Maurício Guetta. “Essa proposta pode se transformar na maior ameaça da atualidade às áreas protegidas e aos povos tradicionais”, completa.

Durante a votação, os ruralistas repetiram o argumento de que o licenciamento seria responsável por atrasar obras, prejudicando a geração de renda e emprego. Geller também negou que seu relatório abriria caminho a mais desmatamento.

“Temos hoje um procedimento demorado, custoso e, ao mesmo tempo, ineficiente em termos da garantia da proteção ambiental. Somos o país com a legislação ambiental mais complexa do mundo, sem estarmos entre aqueles que desempenham os mais efetivos resultados”, disse. “O licenciamento tornou-se um fim em si mesmo, um procedimento desvinculado de seu principal objetivo: a preservação ambiental”, defendeu.

Logo pela manhã, o site de checagem Fakebook, vinculado ao Observatório do Clima (OC), publicou a informação de que, das mais de 14,4 mil obras paralisadas no país em 2019, apenas 1% estavam nessa situação por questões ambientais, segundo relatório do Tribunal de Contas da União (TCU). Em quase um quarto dos casos, os empreendimentos teriam sido abandonados pelo próprio empreendedor.

reportagem lembra que o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, chegou a reconhecer que a razão das paralisações não é o licenciamento, mas a má qualidade dos estudos apresentados por órgãos oficiais e empresas. Também mostra que é falso o argumento de que as licenças são caras no Brasil.

“O mundo inteiro caminha para tornar as regras ambientais mais rígidas, para fazer o meio ambiente ser melhor protegido. O mundo inteiro cobra do Brasil mais proteção ambiental. E o que se quer aprovar aqui é transformar a exceção em regra. Essa lei transforma o licenciamento ambiental, que deveria ser a regra, em exceção”, afirmou o líder da oposição, Alessandro Molon (PSB-RJ). “Disseram que o projeto não abre brecha para o desmatamento. Mas ele é uma porteira aberta para o desmatamento”, completou. O deputado classificou o PL 3.729 como um “tiro no pé” do próprio agronegócio, por ameaçar a imagem internacional do Brasil e, em consequência, as exportações do setor.

Pressão

A pressão contra a proposta ruralista só cresceu após sua divulgação, há menos de uma semana. Inúmeras redes, articulações e organizações da sociedade civil divulgaram manifestos e notas contra o PL, entre eles o OC, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Associação Brasileira de Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), Associação Nacional de Municípios e Meio Ambiente (Anamma), Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente (Abema), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Coordenação de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Também publicaram uma carta contra o PL nove ex-ministros do Meio Ambiente.

Organizações não governamentais, artistas, políticos e influenciadores organizaram dois tuitaços contra a proposta de Geller. Na terça, a hashtag #LicenciamentoFica chegou a ficar no segundo lugar na lista do Trending Topics do Twitter no Brasil.

Entenda os principais problemas do PL 3.729/2004

1. Dispensa de licenciamento para agricultura, pecuária e silvicultura, além de mais 13 tipos de atividades com impactos ao meio ambiente.

2. Brecha para disputa entre estados e municípios, que poderão estabelecer regras de licenciamento menos rígidas do que as de outras unidades da federação para atrair empresas e investidores.

3. Licença autodeclaratória (LAC), emitida automaticamente sem análise prévia de órgão ambiental, passa a ser a regra. Na prática, torna o licenciamento exceção ao invés de regra.

4. Restrições à participação popular no licenciamento, inclusive das comunidades impactadas por empreendimentos.

5. Ameaça às Unidades de Conservação, Terras Indígenas não totalmente demarcadas (41% do total) e territórios quilombolas não titulados (87% do total), porque a análise dos impactos dos empreendimentos sobre essas áreas não será mais obrigatória.

6. Restrição à participação no licenciamento de órgãos como Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Funai, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Ministério da Agricultura e Ministério da Saúde.

7. Bancos e outras instituições que financiam os empreendimentos não terão mais nenhuma responsabilidade socioambiental, ou seja, caso haja danos ao meio ambiente ou tragédias, como a de Brumadinho, eles poderão dizer que não têm nada a ver com o problema.

8. O PL não trata de qualquer questão ligada às mudanças climáticas.

ISA

 

Fonte: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/camara-aprova-texto-principal-de-projeto-que-praticamente-acaba-com-licenciamento-ambiental

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