Documento estabelece condições para consulta de indígenas sobre projetos que afetam as duas Terras Indígenas, como a BR-230

Mariel Nakane

Leonardo De Moura

A abertura da Transamazônica na década de 1970 foi uma experiência traumática para o povo indígena Arara. A estrada federal cortou o seu território ao meio, trouxe fome, doenças e violência. Agora, o governo prevê uma outra obra nessa rodovia que impactará novamente os Arara. A diferença é que dessa vez, os indígenas têm em mãos uma arma poderosa: seu Protocolo de Consulta.

São duas publicações: o Protocolo de Consulta da Terra Indígena Cachoeira Seca e o Protocolo de Consulta da Terra Indígena Arara, lançados no dia 29 de abril em Altamira (PA). Eles estabelecem as regras que os não indígenas devem seguir antes de fazerem qualquer empreendimento próximo aos territórios. É o caso do asfaltamento da Transamazônica justamente no trecho contíguo às duas Terras Indígenas.

protocolos de consulta
Indígena Iptjimaum Arara descarrega um tatu-canastra na aldeia Iriri após um dia de caça na Terra Indigena Cachoeira Seca/Lalo de Almeida

Entre os dias 4 e 8 de abril, com os protocolos em mão, lideranças dos dois povos seguiram para Brasília. Ali, foram aos principais órgãos do governo federal, para exigir a consulta prévia, livre e informada sobre duas obras que impactam seus territórios: o asfaltamento da BR-230 e a hidrelétrica de Belo Monte, cuja licença de operação está em processo de renovação.

A delegação participou de reuniões com representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai), do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovávei (Ibama), do Departamento Nacional de Infraestrutura Terrestre (Dnit), da Defensoria Pública da União (DPU) e do Ministério Público Federal (MPF). Os dois protocolos foram apresentados para cada um desses órgãos. A partir de agora, devem ser utilizados  antes das próximas tomadas de decisão nos processos de licenciamento ambiental da BR-230 e da UHE Belo Monte, que impactam as Terras Indígenas Arara e Cachoeira Seca.

A Transamazônica corta a Amazônia de leste a oeste e foi aberta durante a ditadura militar. A maior parte dela ainda não é asfaltada. O próximo trecho a ser pavimentado é justamente aquele que passa perto do território Arara. O impacto será direto: uma obra como essa valoriza o preço da terra na região, já que facilita seu acesso. Isso impulsiona a especulação fundiária e as invasões de grileiros das terras indígenas. E esse é apenas um dos impactos.

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Vista aérea da aldeia Laranjal às margens do rio Iriri, na Terra Indígena Arara|Lalo de Almeida

Em Brasília, a delegação  também protocolou na Funai e no Ibama a Carta da Associação Indígena do Povo Arara Ugorog’mó nos processos de licenciamento ambiental das duas obras. A delegação ainda apresentou seus Protocolos de Consulta e a Carta com os pedidos de Consulta sobre a BR-230 e a renovação do licenciamento da UHE Belo Monte a representantes do DNIT, da DPU e do Ministério Público Federal (MPF).

Transamazônica: bloqueio do trecho km 750 a km 851

Nas décadas de 1970 e 1980, a abertura da Transamazônica cortou o território tradicional dos Arara ao meio, trazendo violência, doenças e fome, e forçando os indígenas a fazerem contato definitivo com a sociedade não-indígena. Em 1983, uma parte desse povo se estabeleceu na região que se tornou a Terra Indígena Arara. Em 1987, outro grupo fez o contato com os não-indígenas e se estabeleceu na região demarcada como Terra Indígena Cachoeira Seca, atualmente uma das mais desmatadas da Amazônia.

Com o início da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, em 2011, os dois territórios passaram a sofrer ainda mais com o assédio constante de invasores e com o roubo de madeira. Muitas vezes, os próprios indígenas fazem expedições de proteção territorial, colocando a própria vida em risco. A pavimentação do trecho da Transamazônica (BR-230) entre Medicilândia e Rurópolis, limítrofe à TI Arara, aumenta a preocupação com a pressão de madeireiros, invasores, grileiros e garimpeiros devido à valorização das terras na faixa de domínio da rodovia e a intensificação do fluxo de karei (não indígenas).

Tanto a TI Arara quanto a TI Cachoeira Seca são formalmente reconhecidas como impactadas pela rodovia e estão incluídas no Componente Indígena do processo de licenciamento ambiental da pavimentação da Transamazônica (BR-230) no Pará, iniciado no ano de 2005.  A construção do trecho está bloqueada pelo Ibama até que sejam cumpridas as condicionantes: execução de Plano de Proteção nas Terras Indígenas, a extinção das estradas clandestinas  e o apoio às ações de desintrusão (retirada de invasores) das Terras Indígenas, além da elaboração e validação do Componente Indígena do Plano Básico Ambiental (PBA-CI) com a participação indígena.https://www.youtube.com/embed/mbh8QdzkiZI?autoplay=1&start=0&rel=0&enablejsapi=1&origin=https%3A%2F%2Fwww.socioambiental.org

Segundo a Funai, tais ações ainda não foram executadas. Por isso, a obra segue bloqueada. O Dnit, no entanto, iniciou a construção de algumas pontes, ferindo o direito de consulta dos indígenas. Os Arara exigem a consulta sobre o cumprimento das condicionantes e também sobre a construção dessas pontes. Esse passo deve ser feito pela Funai já observando as regras estabelecidas nos dois protocolos.

Proteção Territorial: Desintrusão da TI Cachoeira Seca e bases de proteção territorial

Uma das Terras Indígenas mais desmatadas do país, a TI Cachoeira Seca aguarda o início imediato da desintrusão do território desde novembro de 2020. A desintrusão é a retirada de invasores ilegais que se instalaram dentro do território e é uma condicionante da Usina Hidrelétrica de Belo Monte que não foi cumprida até hoje.

O processo estava parado, ferindo um direito do povo Arara e uma decisão da Justiça Federal de Altamira. No dia 6 de abril, a delegação Arara se reuniu com representantes da Diretoria de Proteção Territorial (DPT) da Funai para discutir esse tema. Estavam acompanhados de um representante da DPU. Acatando uma solicitação da DPU, a Funai se comprometeu a reunir a comissão responsável por avaliar benfeitorias (construções feitas dentro da TI antes da sua demarcação e cujos donos não indígenas devem ser indenizados pelo governo). Com essa reunião, a Funai pode deliberar sobre ocupantes de boa fé (aqueles anteriores à demarcação da Terra Indígena). Depois dessa etapa, não há mais nenhum entrave para que a desintrusão (retirada de invasores ilegais que não devem ser indenizados) seja feita.

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Mulheres Arara durante lançamento do Protocolo de Consulta do Povo Indígena Arara, na aldeia Iriri|Lalo de Almeida

Outro compromisso estabelecido pela Funai nessa reunião é o andamento do processo de construção de duas bases de proteção territorial dentro da Terra Indígena Cachoeira Seca, que faziam parte do Plano de Proteção, uma das condicionantes de Belo Monte, mas que nunca foi cumprida. O aumento do fluxo de não indígenas na região por conta da construção da usina era um fator conhecido de aumento de invasões e desmatamento na região. Por isso, a concessionária deveria garantir a construção de duas bases de proteção em pontos estratégicos da Terra Indígena – locais que são, sabidamente, rotas de invasão. Essas bases deveriam ter sido feitas antes da emissão da licença de instalação da Usina, em 2012. Mas até hoje, 10 anos depois, nada foi feito. Essa década sem o Plano de Proteção Vigente potencializou a vulnerabilidade territorial da TI, uma das mais desmatadas do Brasil e que hoje vive o passivo de invasões, grilagem, desmatamento e roubo de madeira. Os indígenas já vivem a redução da caça, da pesca e maior dificuldade em manter seu modo de vida graças à escalada das invasões.

Na reunião com os Arara, a Funai afirmou que as tratativas entre a Norte Energia (concessionária de Belo Monte e responsável pela desintrusão) e as Forças Públicas de Segurança para implantação das bases foram reiniciadas recentemente. Segundo o órgão, um novo cronograma para a sua construção deve ser executado o mais rapidamente possível.

A DPU afirmou junto aos indígenas o compromisso de monitorar o processo e de solicitar à DPT/FUNAI um cronograma dos próximos passos para a desintrusão e para a construção das bases de proteção na TI Cachoeira Seca.

Fonte: https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/com-novo-protocolo-de-consulta-povo-arara-exige-participacao-nas-regras-de

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