Parecer permite venda de terras a estrangeiros e isenção de Cadastro Ambiental Rural. Parlamentares aproveitam período pré-eleitoral para atender interesses de setores específicos em outras MPs
Em sessão tumultuada, na manhã de ontem (9/5), uma comissão mista do Congresso aprovou, por 17 votos a 7, o relatório do deputado Júlio Lopes (PP-RJ) sobre a Medida Provisória 814/2017, que reestrutura o setor elétrico. O texto final contém diversos “contrabandos legislativos”, também conhecidos como “jabutis” – propostas sem relação direta com o tema principal da MP – contra a legislação ambiental. Em decisão de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu esse tipo de manobra. A MP 814 segue agora ao plenário da Câmara e, se for aprovada, vai ao do Senado.
Uma das emendas do deputado Fábio Garcia (DEM-MT) incorporada ao relatório permite a venda de terras para empresas estrangeiras de geração, transmissão e distribuição de energia. A possibilidade de comercialização de terras por corporações e pessoas de outros países, bandeira ruralista, é um dos assuntos mais polêmicos em discussão no Congresso e objeto de um projeto de lei que tramita na Câmara.
Garcia insiste que o objetivo da medida é estimular novos investimentos no Brasil e garantir que as firmas vencedoras nas licitações do setor tenham condições de implantar seus projetos, já que as concessionárias precisam obter ou arrendar áreas para viabilizar barragens, parques eólicos e solares, linhas de transmissão e subestações de distribuição. O deputado nega que sua proposta não tenha relação com o assunto principal da MP. “Não estou tratando de nenhum outro tema que não seja o setor elétrico”, afirma.
“Um possível efeito dessa medida, gravíssimo, seria permitir que estrangeiros adquiram fazendas fornecedoras de matéria-prima para a geração de energia, como a cana-de-açúcar, por exemplo, aproveitando-se de um contrabando legislativo para criar um regime de exceção à legislação que rege o tema”, alerta o advogado do ISA Maurício Guetta.
Outra emenda incluída no parecer aprovado, do deputado Gabriel Guimarães (PT-MG), isenta as empresas do setor de realizar o Cadastro Ambiental Rural (CAR), o que pode dificultar a identificação, fiscalização, responsabilização e recuperação de áreas desmatadas ilegalmente. O CAR foi instituído pelo Código Florestal (Lei 12.651/2012) com o objetivo de criar um registro de todos os imóveis rurais, integrando suas informações em uma grande base de dados para garantir a regularização ambiental, o monitoramento e combate ao desmatamento.
“Fazendas fornecedoras de matéria-prima para a geração de energia estariam dispensadas do CAR, o que criaria um rombo no sistema, podendo comprometê-lo por inteiro. Com a exclusão desses imóveis rurais do CAR, fica em dúvida a capacidade de o poder público exigir o cumprimento do Código Florestal”, analisa Guetta.
Os defensores da ideia lembram que as Áreas de Preservação Permanente (APPs) de reservatórios de hidrelétricas, previstas no Código Florestal, por exemplo, têm de ser definidas obrigatoriamente nos projetos encaminhados para obtenção de licenças ambientais e que, portanto, não haveria risco de descumprimento da lei. Assim, os órgãos ambientais poderiam continuar a monitorar e fiscalizar essas áreas.
Júlio Lopes não soube explicar à reportagem as consequências da medida. Ele também negou que as alterações feitas na MP sejam “jabutis”.
“Se nem mesmo o relator sabe justificar a sua finalidade, então que as retire do texto”, defende Guetta. “Essas medidas alteram o Código Florestal e a lei que regula a venda de terras para estrangeiros. Sua aprovação representaria afronta direta ao STF”, conclui.
“Se aprovado do jeito que está o relatório, qualquer empresa estrangeira poderá comprar 100, 500, um milhão de hectares e não estar no CAR”, criticou a senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM).
Batalha entre governo e oposição
A sessão em que o relatório foi aprovado tornou-se uma batalha entre governo e oposição, que fez de tudo para protelar a votação e não conseguiu aprovar nenhuma alteração no parecer. Júlio Lopes e os governistas defendem que a MP visa apenas ampliar investimentos, dar mais transparência e sanear o setor elétrico. Já parlamentares contrários ao projeto argumentam que, originalmente, ele tinha um escopo bem menor e que, ao longo da tramitação, transformou-se numa proposta de reestruturação do setor, com mudanças na tarifa social, em prazos de contratos e nas formas de pagamento de dívidas bilionárias das empresas elétricas. O texto original da MP continha apenas quatro artigos, alterando duas leis. O relatório aprovado contém 30 artigos, propondo mudanças em 16 leis.
A redação da MP que saiu do Planalto incluía a Eletrobrás no programa de privatização do governo, mas esse dispositivo foi retirado do parecer. Apesar disso, deputados e senadores do PT, PCdoB, PSB e PDT insistiram que o projeto prepara o terreno para a privatização, já em discussão na Câmara. Eles repetiram que a proposta contém uma “plantação de jabutis” e argumentaram que sua aprovação vai provocar o aumento das contas de luz e retirar recursos destinados à saúde e educação do Fundo Social da exploração da camada pré-sal. O senador Lindbergh Farias (PT-RJ) disse que a oposição não descarta a apresentação de uma ação judicial contra a MP.
Mais “jabutis” contra legislação ambiental e indigenista
A aprovação da MP acontece num contexto em que parlamentares estão tentando aproveitar o quórum e visibilidade baixos do Congresso, comuns em ano de eleições, para aprovar propostas que atendem interesses paroquiais, mas que podem produzir retrocessos importantes, em especial para povos indígenas e o meio ambiente. Os “jabutis” estão sendo incluídos nos projetos em tramitação com esse objetivo.
Neste ano, a situação é ainda mais grave porque a crise política desvia a atenção da imprensa e da sociedade civil. A fragilidade do governo Temer e de sua base parlamentar também abre espaço para acordos isolados entre parlamentares e bancadas, costurados às margens das prioridades e do controle do Planalto.
As MPs precisam ser aprovadas em, no máximo, quatro meses e, após 45 dias de tramitação, passam a trancar a pauta do plenário da casa legislativa em que estiverem. Os prazos curtos para apreciação acabam forçando acordos com pouco tempo para o debate das matérias dentro e fora do Congresso.
Das 21 MPs que estão tramitando hoje no Congresso, o ISA identificou, além da MP 814, mais duas em que há emendas com “jabutis” que ameaçam a legislação ambiental e indigenista
A desconexão entre o objeto da MP 820/2018 e algumas das emendas propostas a ela é ainda mais grave. A MP lista ações de assistência para os refugiados vítimas da crise humanitária da Venezuela. Emendas à norma dispensam a consulta a comunidades indígenas e à Fundação Nacional do Índio (Funai) sobre a construção de empreendimentos de energia estratégicos às margens de rodovias e ferrovias já implantadas em Terras Indígenas (TIs), o que viola a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A proposta tem alvo certo: viabilizar a linha de transmissão que atravessaria a TI Waimiri-Atroari (AM/RR), bandeira eleitoral de vários políticos de Roraima. O relator da MP, deputado Jhonatan de Jesus (PRB-RR), já avisou que vai incorporar a ideia em seu parecer.
Já emendas do deputado Valdir Colatto (MDB-SC) à MP 824/2014 mexem em um vespeiro ainda maior da legislação ambiental. A MP pretende estimular a irrigação no país e, sob essa justificativa, as propostas de Colatto preveem flexibilizar o licenciamento ambiental. Uma delas declara automaticamente como de “utilidade pública” todos os projetos de irrigação, o que tornaria a análise de seus impactos ambientais muito mais rápida e menos rigorosa, além de permitir o desmatamento à beira de rios. Outra emenda pretende simplificar o licenciamento de hidrelétricas com potência de 30 a 50 megawatts. Usinas desse porte, não importa o tamanho do lago, passariam a ser consideradas como Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs). A proliferação de PCHs é considerada umas das maiores ameaças a rios da Amazônia e Pantanal.
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