Representantes de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais defenderam conhecimentos ancestrais na COP16 📷 Ana Amélia Hamdan/ISA

Reconhecer conhecimentos ancestrais e recuperar áreas degradadas são essenciais, defenderam especialistas do ISA em Cali, na Colômbia

Ana Amélia Hamdan – Jornalista do ISA

As práticas, os modos de vida tradicionais e os sistemas de conhecimento são a base da sociobioeconomia e geradores de biodiversidade. As formas de reconhecimento e financiamento desses saberes, ao lado de ações para restauração de áreas degradadas, foram temas amplamente discutidos durante a COP16 da Biodiversidade, que aconteceu em Cali, na Colômbia, entre os dias 21 de outubro e 2 de novembro. 

Por um lado, a COP16 não trouxe definições consistentes de mecanismos de financiamento dos países desenvolvidos às ações que podem de fato proteger a biodiversidade do planeta, o que coloca em risco a implementação do Marco Global de Biodiversidade  (GBF).

Ainda assim, a sociedade civil organizada, agentes públicos, fundos indígenas e não indígenas, setor privado e povos tradicionais promoveram uma série de encontros e discussões na busca de caminhos para esses financiamentos, que são fundamentais para a promoção de economias baseadas na sociobiodiversidade.  

O ISA levou para a COP16 a importância de reconhecer os sistemas de conhecimento, agrícolas e os serviços prestados por Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais (PIQCTs) como base de programas e mecanismos de promoção de suas economias. Um trabalho ancestral que promove fartura e gera vida. 

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Jeferson Straatmann, especialista em sociobiodiversidade do ISA 📷 Ana Amélia Hamdan/ISA

“As economias da sociobiodiversidade se estruturam a partir de sistemas culturais, de conhecimento tradicional, éticos e de trocas pautadas em relações profundas de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais com a natureza. Mais do que provedoras de insumos, são economias do conhecimento, da inovação e de serviços profundamente ligadas aos ecossistemas, contribuindo para sua manutenção e melhoria”, explicou Jeferson Straatmann, especialista em sociobiodiversidade do ISA.

Ele participou dos debates na COP 16 e pondera que o primeiro passo para o desenvolvimento de qualquer economia é a segurança e a garantia de direitos.

Nesse sentido, a regularização e segurança dos territórios tradicionais é fundamental para o desenvolvimento de suas economias e para a implementação dos planos de gestão territorial e ambiental indígena (PGTA) e quilombola (PGTAQ) 

Straatmann reforçou que políticas e programas de salvaguarda dos sistemas culturais, agrícolas e de conhecimento devem ser trabalhadas como promotoras dessas economias, conhecimentos e culturas e, consequentemente, de promoção de biodiversidade, regulação climática e água.

Algumas dessas ações são os programas de compras públicas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), a política de acesso ao patrimônio genético, conhecimento tradicional e repartição de benefícios e a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA).

“Esses povos são detentores de saberes ancestrais que, há centenas e, em alguns casos, milhares de anos, mantêm vivos sistemas agrícolas tradicionais e de conhecimento que resultam na manutenção e melhoria dos ecossistêmicos, como preservação de florestas, geração de biodiversidade, proteção das águas e regulação do clima”, complementou.

A Lei Nº 14.119 de 2021 define Serviços Ambientais como atividades individuais ou coletivas que favorecem a manutenção, a recuperação ou a melhoria dos serviços ecossistêmicos, enquanto serviços ecossistêmicos são “benefícios relevantes para a sociedade gerados pelos ecossistemas, em termos de manutenção, recuperação ou melhoria das condições ambientais”. 

Durante a COP16, o ISA divulgou o vídeo Pagamento por Serviços Ambientais – Trabalho que gera fartura e semeia vida, sobre o PSA.

Assista! 

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Patrícia Cota, diretora executiva do Instituto de Manejo Florestal e Agrícola (Imaflora), trouxe para o debate o desafio de se estabelecer um preço justo dos produtos da floresta, o que deve ser feito agregando valores ambientais. 

“Na realidade, quando se olha a economia da floresta como provedora de insumos e produtos, a conta não fecha. O produto da floresta não concorre em preço e escala com o produto da monocultura, por exemplo. A gente não deve olhar essa cadeia apenas como provedora de produtos, mas como uma cadeia que é parte da solução da sociedade contemporânea, que está colaborando no enfrentamento das mudanças climáticas, na redução das desigualdades e é essencial na transição para uma nova economia mais descarbonizada e ética”, pontuou. 

O ISA e o Imaflora compõem a Rede Origens Brasil, uma rede de comunidades, organizações da sociedade civil e empresas que buscam promover relações éticas de comércio entre empresas e comunidades com rastreabilidade e garantia de origem.  

Durante os debates, os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais trouxeram as condições para que possam desenvolver seus modos de vida e promover a “Paz com a Natureza” – lema da COP16. A primeira delas é a proteção territorial, com a demarcação de terras, ao lado de gestão territorial e ambiental e autonomia financeira.

Coordenadora do Fundo Indígena da Amazônia Brasileira (Podáali), da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Valéria Paye explica que o fundo vem moldando sua maneira de atuar considerando as realidades dos povos indígenas, buscando, por exemplo, reduzir a burocracia. 

Um sistema de premiação foi criado em conjunto com o povo Xavante, levando em conta conceitos como diversidade de sementes e conhecimentos ancestrais. “É importante dizer que todo o processo é de construção longa e o Podáali tem que responder a essa necessidade dos parentes, do território. E temos conversado com nossos parceiros para que esses processos incorporem a nossa perspectiva de trabalhar, de fazer”, disse.  

Integrante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Kátia Penha também cobrou o protagonismo dos quilombolas. “As comunidades quilombolas não têm vulnerabilidade. O que falta é o acesso para a sua economia girar”, ressaltou. 

Restauração  

A restauração de ecossistemas e de paisagens também foi amplamente discutida na COP16 como algo fundamental para a solução para as crises climática, hídrica e da perda de biodiversidade, sendo parte dos principais acordos globais. 

Além dos ganhos ambientais, a restauração traz inúmeros benefícios socioeconômicos, com impacto positivo no bem-estar das pessoas. Justamente por isso, a ONU decretou esta como a Década para a Restauração de Ecossistemas (2020-2030), com o objetivo de prevenir, deter e reverter a degradação dos ecossistemas em todo o planeta. 

O Brasil tem o compromisso de restaurar 12 milhões de hectares e conta com um marco normativo e políticas públicas para isso, que precisam ser implementados. 

Durante a COP 16, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) lançou a segunda edição do Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg 2025-2028), principal instrumento de implementação da Política Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Decreto 8.972/2017), com estratégias e arranjos para a restauração em áreas protegidas, públicas e privadas. 

Era esperado que o Brasil também apresentasse na COP16 sua Estratégia e Plano de Ação Nacionais para a Biodiversidade, conhecida como Epanb, atualizando as metas nacionais frente ao Marco Global de Kunming-Montreal de Biodiversidade, mas não o fez.

Especialista  em restauração ecológica do ISA, Danielle Celentano participou da COP16 e explicou que o  marco global para a biodiversidade (GBF) foi adotado na COP15, em Montreal, para substituir as metas de Aichi (2010 – 2020), que não foram alcançadas.

“Entre as 23 metas do GBF está a restauração de pelo menos 30% dos ambientes degradados do planeta. Isso é importante porque reconhece que, embora a conservação dos ecossistemas naturais seja prioridade absoluta, não é mais suficiente e deve ser complementada por meio da restauração”, disse.

Entenda o GBF

A COP16, em Cali, na Colômbia, contou com representantes de 196 países que buscaram propostas para colocar em prática os compromissos assumidos na COP 15, em Montreal, quando foi adotado o Marco Global de Biodiversidade de Kunming-Montreal (GBF). Conforme a própria ONU aponta, está em curso um perigoso declínio da natureza que ameaça a sobrevivência de 1 milhão de espécies e impacta a vida de bilhões de pessoas. O GBF visa deter e reverter a perda da natureza, estabelecendo metas globais a atingir até 2030.

Celentano reforçou a importância dos povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais para a biodiversidade e para a restauração. 

“Não existe diversidade biológica sem diversidade cultural e vice-versa. A ciência já sabe há muito tempo que são nas áreas de uso coletivo onde a biodiversidade está mais conservada, graças às práticas de manejo tradicional. É fundamental que esses povos tenham participação efetiva nos espaços de tomada de decisão sobre o clima e a biodiversidade e sejam agentes protagonistas da restauração. Afinal, são as nossas únicas referências de sociedades que vivem em ‘paz com a natureza’. Vê-los organizados e reconhecidos na COP 16 traz um pouco de esperança”, comemorou.

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Danielle Celentano, especialista  em restauração ecológica do ISA 📷 Ana Amélia Hamndan/ISA

“Nos diferentes biomas, a restauração depende da biodiversidade, das sementes e do conhecimento oriundo dos territórios de PIQCTs para sua efetiva implementação. É fundamental que a ciência, a política e a prática da restauração reconheçam isso e incorporem valores bioculturais”, defendeu. 

O ISA trabalha com restauração há quase 20 anos. Aprendendo com a natureza e os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, promove o sistema de restauração com semeadura direta que garante diversidade de espécies e redução de custos – a muvuca de sementes. 

O método foi reconhecido com uma “Boa Prática” de restauração pela ONU. A semeadura direta com muvuca requer grandes quantidades de sementes. A coleta e o beneficiamento dessas sementes são atividades que criam oportunidades de trabalho e renda para as comunidades locais em seus territórios e estabelecem uma cadeia produtiva da socioeconomia que valoriza os ecossistemas conservados. 

Para apoiar a estruturação da base da cadeia de restauração com diversidade e rastreabilidade no Brasil, foi estabelecida uma articulação entre redes e grupos de coletores de sementes de base comunitária: o Redário

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Atualmente, 27 redes em quase todos os biomas brasileiros estão articuladas e fornecendo toneladas de sementes de espécies nativas com diversidade para projetos de restauração, contribuindo com as metas climáticas e de biodiversidade do Brasil.

Fonte: https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/cop16-reforca-papel-da-economia-dos-povos-tradicionais-e-da-restauracao

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