Por Juliana de Paula Batista e Tiago Moreira dos Santos

A atuação da Apib foi fundamental no combate a excessos e violências que agridem garantias constitucionais de povos tradicionais. Mas é preciso que o Judiciário faça sua parte

Em julho deste ano, a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), em conjunto com seis partidos políticos, propôs no STF (Supremo Tribunal Federal) a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 709. A ADPF pleiteia medidas de proteção sanitária para povos indígenas, devido à pandemia provocada pelo novo coronavírus. De acordo com a ação, “o índice de letalidade da covid-19 entre povos indígenas é de 9,6%, enquanto que, entre a população brasileira em geral, é de 5,6%”.

A medida cautelar foi deferida pelo ministro Luís Roberto Barroso, em julho, e referendada pelo plenário do STF em agosto. Com isso, a União foi obrigada a elaborar um plano de combate à covid-19 para os povos indígenas, a colocar barreiras sanitárias em 33 terras com a presença confirmada de indígenas isolados (sem contato com a sociedade envolvente) e, ainda, a conter e isolar invasores, potencialmente disseminadores da doença.

A colocação de barreiras sanitárias segue a ritmo sofrível. A terceira versão do plano geral apresentado pelo governo, em dezembro, não foi homologada. Segundo Barroso, “apesar da decisão e da letalidade, impressiona que, após quase 10 meses de pandemia, não tenha a União logrado o mínimo: oferecer um plano com seus elementos essenciais, situação que segue expondo a risco a vida e a saúde dos povos indígenas”.

A Apib ganhou, mas a União vem se esforçando para que ela não leve. A negligência é paga com vidas indígenas. Só na terra indígena Yanomami, o novo coronavírus avançou 250% em três meses. Em algumas regiões, houve transmissão comunitária da doença, levada por garimpeiros que atuam na área ilegalmente.

A Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas), em conjunto com mais cinco partidos políticos, também propôs uma ADPF para o combate à covid-19 entre os quilombolas. Mas, até a presente data, a ADPF nº 742 repousa no gabinete do ministro Marco Aurélio, sem que o pedido liminar tenha sido analisado.

A pandemia avançou e demonstrou que invasores de terras indígenas não fazem home office. Dados do sistema Deter (Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real), do Inpe, (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) indicam que essas áreas já haviam perdido, entre janeiro e agosto de 2020, cerca de 20 mil hectares. Depois disso, perderam mais 17 mil hectares de florestas. O desmatamento nas terras indígenas, em outubro de 2020, foi 200% maior do que no mesmo mês do ano anterior, quando 2,6 mil hectares de florestas foram destruídos.

Além de todo o cenário desastroso provocado pela pandemia e a inação do governo em combater o desmatamento e a degradação florestal, Jair Bolsonaro vem cumprindo sua promessa de não demarcar um centímetro quadrado a mais de terras indígenas. O monitoramento realizado pelo ISA (Instituto Socioambiental) é elucidativo sobre como a questão vem perdendo força. Desde setembro de 2018 não é sancionado nenhum decreto ou portaria que vise o reconhecimento de territórios indígenas. Sob o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), 145 terras foram demarcadas. No período em que Luiz Inácio Lula da Silva esteve no poder (2003-2010), foram 87. Nos governos de Dilma Rousseff (2011-2016), foram 21 terras demarcadas. Sob o governo de Michel Temer (2016-2018), apenas uma única terra foi demarcada. Bolsonaro ainda não demarcou nenhuma área.

As consequências da postura da administração federal são evidentes: caos, aumento dos conflitos, das invasões e do número de contaminações dos indígenas pela covid-19. O desmatamento nas terras indígenas explodiu durante a gestão Bolsonaro e os povos indígenas nunca se viram tão ameaçados e vulneráveis ante o desmonte dos órgãos de proteção ambiental e da capacidade do Estado em resguardar suas terras e vidas.
É certo que a proteção dos indígenas sempre foi difícil. Governos de esquerda e de direita violaram seus direitos, deixando-se pressionar por interesses políticos e econômicos duvidosos. Mas, desde a redemocratização do país, é a primeira vez que uma gestão assume e declara que fará uma política contrária aos direitos dos povos indígenas e quilombolas.

As instituições, contudo, não podem ser sequestradas para projetos de poder egoísticos. Acima dos governantes, há a Constituição Federal e as leis. A proteção dos direitos dos indígenas e quilombolas é uma política de Estado. Não estão ao bel prazer de governantes de ocasião, que mudam de quatro em quatro anos. Nem podem ser sufragadas por maiorias, já que a democracia é aprimorada quanto mais a proteção das minorias vencidas em processos políticos-eleitorais está garantida.

O que esperar para 2021? Ou, nas palavras de Ailton Krenak, “há mundo por vir”? A resposta será dada pela resistência secular dos povos indígenas e quilombolas. Mas também pela capacidade dos Poderes da República, em especial o Judiciário, em fazer sua tarefa de freios e contrapesos, limando excessos e violências que agridem garantias constitucionais. Nós, da sociedade civil organizada, continuaremos no front, lutando por nenhum direito a menos e nenhum passo atrás.

Juliana de Paula Batista é advogada do ISA (Instituto Socioambiental) e mestre em direito pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).

Tiago Moreira dos Santos é assessor do Programa de Monitoramento de Áreas Protegidas do ISA. É cientista social e mestre em antropologia social pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).

(https://www.nexojornal.com.br/ensaio/debate/2020/Defesa-judicial-dos-dir…)

 

Fonte: https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-ppds/defesa-judicial-dos-direitos-indigenas-avancou-em-2020

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