Produção foi gravada no encerramento da campanha “Fora Garimpo, Fora Covid”, que coletou mais de 430 mil assinaturas pela retirada de invasores da Terra Yanomami
Por Evilene Paixão
Em dezembro de 2020, desenhos dos “xapiri”, os espíritos da terra-floresta na cultura Yanomami, foram projetados pela primeira vez no Congresso Nacional, em Brasília. Ao final de um ano desafiador para os Yanomami, com a explosão do garimpo e da Covid-19, a arte de Joseca Yanomami ganhou som e movimento na fachada da ‘Casa do Povo’, marcando o encerramento da campanha “Fora Garimpo, Fora Covid” e a entrega às autoridades de mais de 430 mil assinaturas pedindo a desintrusão de seu território.
Daquela noite, nasceu o filme “O Sopro dos Xapiri – Xapiri pë në mari”, que estreia na segunda-feira (23/08), na abertura da Mobilização Nacional Indígena Luta pela Vida, realizada em Brasília, e que vai contar com a presença do xamã e liderança indígena, Davi Kopenawa Yanomami. Frases dele, extraídas por meio de pesquisas, também fizeram parte da intervenção artística na capital federal, no ano passado.
“Nós estamos mostrando a nossa cultura para a cidade grande, para o homem branco que não conhece. Estamos divulgando os cantos da floresta – canto da riqueza, da saúde, da comida, da água – o canto dos Xapiri, que é muito importante para todos nós, não só para os Yanomami e povos indígenas, mas porque o Xapiri é o principal espírito que entra em contato com o universo, para segurar a queda do céu”, explica Kopenawa.
Segundo o xamã, a exibição do filme em Brasília deve aproximar as mobilizações de Yanomami e outros povos indígenas. “Os parentes, que cantam e falam diferente, também vão assistir ao filme. Nós estamos no mesmo caminho, no mesmo pensamento, na mesma luta. Vamos pedir o apoio dos nossos parentes, que já vêm sofrendo muito antes que nós. Vamos mostrar para os jovens líderes e pedir apoio para salvar as nossas vidas”, ressalta.
A Mobilização Nacional Indígena Luta pela Vida acontece a partir desta segunda-feira (23/8) e se estende até o dia 28. O evento, organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), pretende pôr um freio à agenda anti-indígena que segue em pauta no Congresso Nacional, além de se manifestar contra o Marco Temporal, que entra na pauta dia 25, no Supremo Tribunal Federal (STF).
O evento contará com representantes indígenas de todo o Brasil. De Roraima, participam lideranças do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Hutukara Associação Yanomami (HAY) e Associação Wanasseduume Ye’kwana (Seduume). Durante toda a semana, as lideranças indígenas participam de diversas plenárias com temas como ‘Garantia dos territórios, modos de vida e produção dos povos indígenas’ e ‘Políticas públicas para os povos indígenas’.
Fora Garimpo, Fora Covid
Realizada pelo Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana, a campanha “Fora Garimpo, Fora Covid” chamou a atenção do mundo para a devastação na Terra Yanomami, com o avanço desenfreado do desmatamento, da proliferação de doenças e de ataques violentos.
Em 2020, uma área equivalente a 500 campos de futebol foi devastada, indicando um aumento de 30% em relação ao ano anterior. No início de 2021, sobrevoos revelaram que o garimpo está produzindo na terra indígena uma nova ‘Serra Pelada’, nome do maior garimpo de ouro a céu aberto do mundo, no sudeste do Pará, na década de 1980.
Em junho, dados do Sistema de Monitoramento do Garimpo Ilegal na Terra Indígena Yanomami mostraram que a área impactada pelo garimpo hoje soma um total histórico de 2.702 hectares.
Foram destruídos 463 hectares de dezembro de 2020 a junho de 2021, o que representa um aumento de 21%.
Esse montante é quase o total acumulado em todo o ano de 2020, quando o garimpo se expandiu com maior intensidade nos últimos anos.
“O garimpo tem afetado diretamente a vida dos povos Yanomami e Ye’kwana”, lamenta Maurício Ye’kwana, diretor da Hutukara. Segundo ele, o número de invasores na Terra Yanomami dobrou durante a pandemia. “Vamos continuar na linha de frente, porque não podemos ficar parados esperando a resposta do presidente. Isso não vai acontecer”, pontuou.
“Nossa ida a Brasília será para mostrar a nossa força e vamos cobrar de quem for preciso, do Congresso Nacional e até mesmo do STF. Vamos relembrar a campanha ‘Fora Garimpo, Fora Covid!’”, disse Maurício, um dos porta-vozes da campanha.
Desde o final da campanha, a Hutukara Associação Yanomami já apresentou uma série de denúncias às autoridades e órgãos públicos pedindo providências, com ênfase na apresentação de um plano integrado de desintrusão total do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami, a retomada de operações periódicas na Terra Indígena para destruição da infraestrutura clandestina instalada e o avanço das investigações para identificar e responsabilizar os investidores da cadeia do ouro ilegal.
Nenhuma ação nesse sentido foi empreendida até o momento.
“O Sopro dos Xapiri – Xapiri pë në mari”
O curta-metragem ‘O Sopro dos Xapiri – Xapiri pë në mari’ foi uma criação de Gisela Motta, Isabella Guimarães e Mariana Lacerda, do grupo Barreira Y. – amigas que se tornaram parceiras de trabalho em ações e alianças comuns em defesa do povo Yanomami e Ye’kwana.
Em maio do ano passado, o grupo começou a projetar o material de suas pesquisas pelo Brasil e se conectou à uma rede de projecionistas em defesa dos povos indígenas, que passou a colaborar com as ações. As cidades que receberam a produção foram São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Fortaleza, Porto Alegre e Belém. “Tudo foi se construindo e se constituindo devagar, com um desejo potente de estarmos juntas e mobilizarmos algo com e para os Yanomami”, lembram as artistas.
O trio se fortaleceu e passou a fazer parte da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, um grupo de pesquisadores e apoiadores dos indígenas. Mais adiante, elas foram convidadas para elaborar a ação no Congresso Nacional.
“O trabalho partiu de fazer os Xapiri sobrevoarem Brasília. Não tínhamos outra escolha a não ser recorrer aos espíritos da terra-floresta e à linguagem inebriante do mundo Yanomami, com os desenhos, as músicas e o pensamento. Desde o início, queríamos fazer um trabalho em interlocução e colaboração direta com os Yanomami, a partir de suas formas de expressão”, explicou o grupo.
Para montar as projeções, elas mergulharam na obra de Joseca Yanomami e no pensamento de Davi Kopenawa, além de usarem o projeto sonoro ‘Som das Aldeias’, de cantos Yanomami e cedido pelo socioambientalista Marcos Wesley.
O filme, ainda não está disponível ao público.
SINOPSE:
Era noite em Brasília, quando os Xapiri ocuparam o conjunto arquitetônico modernista do Palácio do Congresso Nacional, transfigurado em terra-floresta. O valor de um sonho, induzido pela visita dos espíritos da terra-floresta que levam à imagem dos xamãs é xapiri pë në mari, na língua Yanomami. O xamã contou: “quando estou dormindo, estou sonhando, olhando, cantando, movimentando. Tudo isso é sonho, xapiri pë në mari”.
FICHA TÉCNICA:
O sopro dos Xapiri – Xapiri pë në mari
Brasil, 2021, 8 min.
vídeo, colorido, sonorizado – registro de animação em três canais projetada no Palácio do Congresso Nacional
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