Humboldt Forum é inaugurado com reflexões sobre saques de objetos no período colonial e desafio de romper com esses modelos

Sair de comunidades indígenas na floresta Amazônica, passar pelos rios Tiquié, Uaupés e Negro até a cidade de São Gabriel da Cachoeira (AM), começar ali as viagens de avião, com escalas em Manaus, São Paulo e Zurique, até finalmente aterrizar em Berlim. 

Esse foi o trajeto de Damião Amaral Barbosa, do povo Yebamasã, e de Rogelino da Cruz Alves Azevedo, Tukano, que passaram dez dias em Berlim, em setembro, para a inauguração do mais novo museu e centro cultural da cidade, o Humboldt Forum

O novo espaço traz a proposta de ser um museu mais “pé no chão”, conectado com os povos indígenas que produziram suas coleções.

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Damião explicando calendário anual do Rio Tiquié no Humboldt Forum

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Damião fala sobre artefatos do Rio Negro no Humboldt Forum

Damião Barbosa explica o calendário anual do Rio Tiquié e fala sobre os artefatos do Rio Negro no Humboldt Forum 📷 Danilo Parra

Damião e Rogelino são moradores de comunidades situadas no Alto Rio Negro, mais especificamente no Rio Tiquié, próximas à fronteira com a Colômbia. Falantes de makuna e tukano, respectivamente, eles são Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (Aimas), constituindo com seus colegas um grupo de quase 50. 

Eles realizam pesquisas em suas comunidades sobre o meio ambiente e sobre como manejar seus recursos e ciclos, de acordo com conhecimentos acumulados ao longo de muitas gerações vivendo nessa região da Amazônia. São agentes do manejo do mundo, o que inclui também curar as épocas do ano para que as estações passem no tempo certo, sem doenças ou infortúnios, e traduzem suas observações e práticas em registros escritos diariamente e outros materiais textuais, orais e artísticos.

A dupla rionegrina se juntou com representantes de várias partes do mundo, e para além dos encontros com as coleções, foi porta-voz para falar das parcerias com o Humboldt Forum.

Rogelino mostra banco tukano para ministra alemã Claudia Roth
Rogelino mostra banco tukano para ministra alemã Claudia Roth, com tradução de Andrea Sholz 📷 Divulgação/Humboldt Forum

Além de Rogelino e Damião, havia indígenas de comunidades dos lados colombiano e venezuelano do Rio Negro e também representantes e parceiros da América do Norte, África e Índia e Papua Nova Guiné na semana de inauguração do museu. 

Uma das visitantes foi a Ministra da Cultura alemã Claudia Roth, que conversou com Damião e Rogelino sobre artefatos como o banco tukano. No espaço expositivo da Amazônia, a dupla também mostrou o trabalho que faz de descrição dos ciclos anuais, com desenhos e a relação com os objetos rituais lá expostos. 

No mesmo setor, houve ainda apresentações de Diana Guzman e Orlando Villegas, dos povos Desana e Kotiria, respectivamente, vindos do Vaupés colombiano, e dos Ye’kwana do Alto Rio Caura, que produziram um vídeo sobre uma narrativa mítica e também expuseram um mapa detalhado de seu território na Venezuela, próximo da fronteira com o Brasil.

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Humboldt Forum

A jornada dos Aimas à Alemanha tem paralelo com outra viagem, ocorrida há mais de um século, e em direção oposta, protagonizada pelo etnógrafo alemão Theodor Koch-Grünberg. Em dois anos pelo Alto Rio Negro, Koch-Grünberg seguiu aprendendo sobre a vida nas comunidades e, sempre que possível, adquiriu artefatos, que levou, em sua maioria, para o Museu de Etnologia de Berlim. 

Theodor Koch-Grünberg
Theodor Koch-Grünberg no rio Tiquié, 1904 📷  Familienarchiv Koch-Grünberg

Além da coleção, publicou vários livros e textos, ricamente ilustrados, com as informações reunidas nessa viagem. Esse material foi em grande medida preservado e inspirou uma parceria entre o Museu de Etnologia de Berlim e aqueles que vivem hoje na região. 

Se as guerras mundiais, e posteriormente a Guerra Fria e o Muro de Berlim destruíram e dividiram a Alemanha, os povos do Rio Negro também não tiveram paz ao longo do século 20. Foram alvo de muita violência e pressão, principalmente pelos missionários salesianos, alguns deles fugidos da guerra na Europa. Reprimiram sua cultura, arquitetura, rituais, língua, impondo de forma insistente suas próprias crenças e modos de viver.

Parte dessa cultura pode ser encontrada no Museu de Etnologia, em Berlim. Além de sua significativa coleção do Rio Negro, possui coleções de várias outras regiões do mundo, maiores ainda quando somadas àquelas do Museu de Arte Asiática. É esse acervo, procedente das Américas, África, Ásia e Oceania, que formará as exposições do Humboldt Forum. 

Rogelino Tukano, que esteve pela primeira vez no museu, disse ficar impressionado com o acervo. Porém, ao ver guardados os adornos, instrumentos musicais sagrados e utensílios de seu povo e de outras etnias do Rio Negro, sentiu-se triste de observar “algo que era dos nossos ancestrais”. “Eu vi que lá está bem guardado. Mas para nós é a cultura viva, continuamos vivendo”, disse.  

Se quer os objetos de volta? Rogelino acha que não. “O que ficou lá é deles. Agora temos muita coisa viva em nossas comunidades.”

Ao final, ele considerou positiva a sua primeira viagem à Europa. “Cumprimentaram bem e receberam bem. Tudo novidade. Eu gostei muito. Senti frio e achei as pessoas muito altas, mais altas do que nós, o trânsito diferente também. As pessoas não andam devagarzinho, andam correndo para pegar o metrô, o trem. O metrô é para baixo. Nós rimos muito”, relata.

Já para Damião Yebamasã, esta foi a terceira visita à Alemanha. Na primeira vez, ele pôde ver o acervo de objetos indígenas que está guardado no museu, e na segunda, participar da projeção do calendário astronômico-ecológico-ritual na fachada do Humboldt Forum, em uma de suas pré-inaugurações.

“Indígenas de outros lugares, dos Estados Unidos falaram também que têm a cultura de observar as constelações, que têm história. Eles queriam muito conversar com a gente para entender o que começa primeiro e qual a última constelação,” contou, sobre o encontro com povos da América do Norte. “Queriam saber mais em detalhes de cada constelação, as histórias e o tempo para preparar ritual de dança ou às vezes dabucuri (rituais de oferta de alimentos)”.

Outra semelhança foi a interferência religiosa na cultura indígena, como relatado por representantes do povo Haida, do Canadá. “Muitos esqueceram da cultura, perderam a cultura por causa dos religiosos. Tem algumas coisas que aconteceram no Rio Negro e que ocorreram em outros lugares do mundo”, reflete.

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Saguão do Humboldt Forum

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Vista do pátio interno do Humboldt Forum

Saguão e pátio interno do Humboldt Forum 📷 Divulgação/Humboldt Forum

Damião e Rogelino também visitaram o Jardim Botânico. Após o passeio veio a constatação de que os colonizadores levaram embora mais que os objetos indígenas: levaram também árvores. Na estufa para plantas, os indígenas encontraram manivas e até a pimenta – alimento valioso no Rio Negro.

“Parecia que o Amazonas estava lá”, diz Damião. “Levaram os adornos e as plantas também. Até o carpi, que usamos nos rituais aqui, está lá também. Mas a gente já se fechou um pouco para não explicar e revelar tudo para eles”, sublinha.

Polêmicas e colaboração

O dilema dos museus etnográficos contemporâneos é justamente justificar sua relevância num mundo que mudou muito desde o colecionismo imperialista que inspirou a constituição dessas instituições, há mais de um século. Apesar de  situações de exploração ainda se perpetuarem, os museus em geral buscam inovar,  atualizar sua função e restabelecer conexões colaborativas, indo além de sua mera exibição para o público europeu. 

Mas essa não é uma pretensão fácil de colocar em prática. Se a viagem de Koch-Grünberg ao noroeste amazônico foi amistosa e a aquisição de sua coleção foi feita à base de trocas, essa não foi a prática em outras regiões do globo. Em partes da África e da Papua Nova Guiné, coleções foram reunidas em campanhas militares, através de saques.

"Sem consentimento, sem objeto", diz exposição no Humboldt Forum
“Sem consentimento, sem objeto”: exposição ressalta impasses no acervo do HF 📷 Juliana Lins/Fundação Alexander von Humboldt

Essa herança maldita fica patente no HF. Partes do que será sua exposição permanente, por exemplo, ainda estão propositalmente vazias, seja porque não houve consultas ou colaborações suficientes aos povos que as produziram, seja para evitar que o viés colonial não se reproduza de novas formas – uma vez que ainda são insuficientes as pesquisas sobre como foram adquiridos os pertences culturais, numa perspectiva pós-colonial. 

Na área reservada a coleções provenientes da Tanzânia, ex-colônia alemã, em lugar de artefatos, encontram-se poucas fotos e vários textos chamando a atenção para os impasses em torno desse acervo. “Embora reivindique-se que os pertences do Museu de Etnologia de Berlim representem culturas ’tradicionais’, o que eles realmente fazem é reproduzir a falsa imagem europeia, colonialista e racista de sociedades a-históricas e imutáveis. Coisas que se enquadravam neste estereótipo não foram incluídas no acervo do museu”, lê-se. 

São recorrentes ali as críticas ao forte viés eurocêntrico, muito comum na montagem das exposições, a persistência de uma visão de fora, mesmo que modernizada, e de como poderia haver a participação efetiva dos parceiros não-europeus contemporâneos. “Os arquivos são depósitos de testemunhos do passado. A seleção do material e a forma como é organizado refletem, entre outros, visões particulares do mundo e relações de poder. Mas quem decide quais histórias relembrar e quais ignorar? Que arquivos são reconhecidos na Europa e quais são considerados irrelevantes?”, questiona outro texto.

Em reconhecimento a esse passado colonial das coleções, e a partir de um esforço de se fazer diferente, as novas exibições privilegiam iniciativas colaborativas, que buscam estar em permanente construção. 

Segundo Andrea Scholz, curadora da exposição da Amazônia, que anima a colaboração do museu com os povos do Rio Negro, “estas exposições seriam impensáveis sem o conhecimento e o apoio de pessoas de todo o mundo”. 

O fechamento do seminário interno em que participaram Damião e Rogelino, e que antecedeu à inauguração final do Humboldt Forum, se deu com uma carta-manifesto sobre como o HF deve atuar, em que foi colocado que “os chamados ‘objetos’ ou ‘itens de exposição’ não devem ser reduzidos a meros artefatos, mas entendidos como Bens Culturais, que transmitem relações entre pessoas, localidades, práticas culturais e artísticas, relacionando o passado, o presente e o futuro. A guarda dos Bens Culturais implica cuidado e proteção de seus territórios e habitats conectados”. 

Os participantes internacionais do seminário também propuseram que o museu atue como uma embaixada indígena, com um espaço físico e recursos; também foi proposta uma conferência sobre questões como Restituição e Repatriação. Dignidade, continuidade e transparência foram valores que guiaram essa carta manifesto, disponível aqui

Participação da equipe brasileira no seminário internacional antes da inauguração do Humboldt Forum
Participação da equipe brasileira no seminário internacional antes da inauguração do Humboldt Forum 📷 Danilo Parra

Fonte: https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/indigenas-do-rio-negro-compartilham-cultura-e-saberes-com-novo-museu-em

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