Por Victoria Martins
Certa vez, quando fazia um levantamento de ocupação indígena no Parque Estadual de Guajará-Mirim (RO), Ivaneide Bandeira, mais conhecida como Neidinha Suruí, foi atacada por uma onça-pintada. Ela havia passado três dias ouvindo o assobio do bicho, que a acompanhava por todo lado. Foi então que, ao se sentar no topo de uma cachoeira para observar o entorno, ela percebeu a mata se mexer e, de dentro dela, saltar a onça.
“Eu gritava: ‘ninguém mata, porque eu quero tirar fotografia’”, ela conta. Já seus companheiros de jornada conseguiram reagir: um deles acertou o focinho da onça com um facão e o outro deu um tiro para cima, que assustou o bicho e o fez se afastar. “Depois que tudo aconteceu, o medo chegou. Tremi por mais de meia hora,” explica à Carta Capital.
Parece perigoso, mas Neidinha garante que é justamente esse tipo de adrenalina, a possibilidade de se embrenhar pela floresta sabendo que, a qualquer momento, você poderá dar de cara com um animal ou com algum vestígio de presença indígena, que faz o trabalho com os povos isolados ser tão maravilhoso. “Quando a gente encontrava um artefato indígena, um local onde eles tiraram mel ou pararam para comer, o corpo inteiro entrava em êxtase! É um trabalho que vicia,” comenta.
Neidinha foi a primeira mulher a participar de expedições para localizar vestígios da ocupação de indígenas isolados na Fundação Nacional do Índio (Funai). Na época, durante a década de 1980, este ainda era visto como um “trabalho de homem” e até mesmo os próprios amigos duvidavam de sua capacidade. “Nas primeiras expedições, os meninos colocavam todo o peso para mim”, ela diz. Era uma maneira de ver se ela desistia, mas não deu certo. “Depois eles se acostumaram, viram que não tinha jeito comigo”. Tempos depois, ela nota que mais mulheres estão integrando as equipes de trabalho com os indígenas isolados.
Nas incursões mata adentro, Neidinha já avistou sinais incontestáveis da presença de indígenas isolados e, algumas vezes, viu estes grupos com seus próprios olhos. Mas, seguindo a premissa do não-contato, nunca quis se aproximar – uma única vez, já na década de 1990, esteve na aldeia de um povo que havia sido contatado há pouco mais de uma semana.
A manutenção do isolamento e a proteção dos territórios em que vivem esses povos são essenciais para sua sobrevivência, como apontam a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (Coiab) e o Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi) na campanha #IsoladosOuDizimados.
Meio século de luta
O tempo na Funai, órgão em que entrou como voluntária e onde se tornou chefe de posto da aldeia Jamari, na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, é um capítulo bastante breve na história de Neidinha. Há quase 50 anos, ela luta em defesa da floresta e dos povos indígenas da Amazônia.
Filha de um seringueiro, ela passou boa parte da infância e da pré-adolescência no meio da floresta Amazônica, em uma região onde hoje está a TI Uru-Eu-Wau-Wau (RO). “Eu cresci brincando com paca, cotia, as antas que iam no quintal, os macacos”, relembra. Foi nesta época em que ela avistou, pela primeira vez, um grupo de indígenas Uru-Eu-Wau-Wau – que apareceram, todos pintados de urucum, na outra margem do rio enquanto ela e sua mãe lavavam roupas.
O local onde morava era acessível apenas de avião ou andando 60 dias pela mata em direção ao lugarejo mais próximo. Duas vezes por ano, um monomotor pousava por perto, carregado de alimentos não perecíveis, revistas e livros. Os livros de bang-bang despertaram nela a chama da indignação: como poderiam os invasores entrar nas terras dos indígenas, matar a todos e ainda saírem de heróis? “A partir dessas leituras decidi que, se um dia pudesse ir aonde morava o povo da cidade, lutaria para defender os direitos dos povos indígenas,” contou ao Ecoa UOL.
Aos 12 anos, mudou-se com a família para Porto Velho (RO), onde poderia estudar, mas levou consigo os aprendizados que adquirira na floresta. Participou de grupos de teatro engajado, onde transformou histórias como a de Chapeuzinho Vermelho em peças de denúncia às mortes de animais e indígenas; juntou-se a manifestações pelo meio ambiente e pelos direitos indígenas e criou o Projeto Urucum, cujo objetivo era tratar das situações ambiental e indígena através de pinturas, música, teatro, artesanato e poesia.
Quando ficou mais velha, quis o destino que Neidinha se reencontrasse com os Uru-Eu, a mesma etnia que tinha avistado quando criança. Primeiro, na própria sede da Funai em Porto Velho, da qual era vizinha – um espaço que os indígenas, inclusive de outras etnias, como os Suruí, costumavam frequentar. “Eles atravessavam [a rua] e vinham à minha casa tomar banho, e foi assim que retomamos [o contato]”, lembra. Depois, quando entrou oficialmente para o órgão e começou a trabalhar com esse povo.
“[Reencontrar os Uru-Eu] foi como se eu estivesse reencontrando a minha infância, a minha liberdade. Mas também tinha a sensação de que eles estavam perdendo a liberdade deles,” diz. “Era uma sensação que me impulsionava a me dedicar mais, a trabalhar mais. Despertou esse lado de que, mais do que nunca, eles iam precisar de ajuda”.
Desistir jamais
São quase 30 anos de dedicação à Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, organização que ajudou a fundar no começo dos anos 1990. Exonerada da Funai por denunciar um esquema de corrupção, Neidinha juntou-se com colegas e decidiu criar uma instituição que pudesse lutar junto com os Uru-Eu-Wau-Wau e defender os direitos indígenas.
A Kanindé cresceu e, hoje, atua com mais de 60 etnias, em proteção territorial, fortalecimento das associações indígenas, capacitação e formação dos indígenas, desenvolvimento de cadeias produtivas sustentáveis e apoio às reivindicações políticas dos povos originários.
Neste tempo todo, Neidinha precisou enfrentar madeireiros, mineradores ilegais e demais invasores de terras indígenas e unidades de conservação e, por isso, já sofreu inúmeras ameaças de morte. O risco, que sempre foi muito grande, ficou ainda maior com a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência da República.
“Esse governo passou para essas pessoas que são de quadrilha, de grilagem de terra, uma mensagem de que eles podem matar, invadir, desmatar, queimar, e que nada vai acontecer com eles”, alerta. “Parece que destamparam uma panela grande, onde estavam todas as pessoas que fazem o ódio como alimento. Agora eles não têm medo, porque sabem que têm um representante – e a nossa vida está em perigo”.
“Mas eu já deixei o recado: se me matarem, é pior. Vai aparecer um monte de Neidinha e vai ser ruim para eles”, ri. Apesar do bom humor, Neidinha diz que a mistura da pandemia de Covid-19 com o acirramento das ameaças tem a abalado psicologicamente. “Quando eu saio e vejo minha casa com cercas elétricas e arame farpado, me afeta. Eu fui criada sem muros, livre e solta”, lamenta.
Se já pensou em desistir diante de tantos riscos? “Mas nunquinha!”, afirma categoricamente. “Cada vez que esse povo ameaça, mais eu quero ficar. É mais vontade, mais força, mais razão para continuar. É mais combustível, pode ter certeza”.
Nota: Neidinha Suruí não é indígena, ribeirinha ou quilombola, mas tem uma trajetória de defesa dos povos da floresta perfeitamente alinhada com as mulheres que destacamos na série #ElasQueLutam.
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