Na Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio (PA), povos da floresta se reuniram com empresários na Semana do Extrativismo para viabilizar, de fato, negócios que garantem a floresta viva

Clara Roman – Jornalista do ISA

Criança brinca na Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, na Bacia do Xingu (PA), onde aconteceu a 9ª Semana do Extrativismo 📷 Soll Sousa/SUMAÚMA

Numa sala de aula na Amazônia, indígenas, ribeirinhos, agricultores familiares e empresários não indígenas conversam sobre o futuro. A sala é uma das instalações do polo Morro do Anfrísio, uma das localidades da Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, na Bacia do Xingu, no Pará.

A reunião faz parte da 9ª Semana do Extrativismo (Semex) – um evento onde aqueles que defendem e vivem da floresta se encontram com empresários para discutir negócios e viabilizar, de fato, uma economia sustentável.

Das janelas da sala, cobertas com telas para os mosquitos, avista-se o Riozinho do Anfrísio, um rio de águas escuras e cheias de vida, afluente do Rio Iriri. Do outro lado, a floresta densa a perder de vista. Apesar da paisagem serena, os tempos não estão fáceis: enquanto os extrativistas se reuniam, deputados federais discutiam a aprovação do PL 490, que abre as Terras Indígenas para o garimpo, estradas, arrendamentos,  empreendimentos agropecuários, entre outros (veja aqui).

A Semex, que aconteceu entre os dias 23 e 28 de maio, foi promovida pela Rede Terra do Meio. A articulação surgiu em 2009 para possibilitar preços justos nas cadeias dos produtos da sociobiodiversidade, e remunerar ribeirinhos e indígenas de forma digna, garantindo seu bem viver dentro das comunidades.

Semex pelo olhar dos comunicadores da Rede Xingu+

A 9ª Semex contou com a cobertura de comunicadores da Rede Xingu+.

Joelmir Silva, da comunidade Maribel, e Maxiel Xavier, da Resex Rio Iriri, registraram o evento em fotos, vídeo, texto e áudios. Ao final, produziram um vídeo emocionante.

Assista abaixo: 

Começou com o nome de Rede de Cantinas e, há um ano, foi rebatizada como Rede Terra do Meio. A cantina é um local de troca de saberes, de produtos e mantimentos, onde o produtor entrega sua produção retirada da floresta (de borracha, castanha ou babaçu, por exemplo) em troca de dinheiro ou de mercadorias.  A partir da cantina, esse material será levado para a “rua”, como os beiradeiros chamam a cidade. De barco,  esses produtos chegam na sede da Rede no centro de Altamira e de lá vão abastecer empresas ou vão direto para a venda ao consumidor final.

A cantina opera de forma parecida ao sistema que já ocorria nesses locais há séculos, conhecido por aviamento, e que era viabilizado por meio de atravessadores – os patrões e os regatões. A diferença é que a cantina parte da governança local compartilhada e transparente e de uma remuneração justa ao produtor, acabando com as trocas desiguais que aconteceram na região por anos.

O cantineiro faz parte da Rede, recebe sua porcentagem pelo trabalho junto à comunidade, mas sem levar uma vantagem desigual. “A gente já trabalhava com produtos extrativistas, com nossos antepassados, mas nós vendíamos os produtos para patrões e regatões”, afirma Pedro Pereira, da comunidade Paulo Afonso, no Riozinho do Anfrísio, e fundador da primeira cantina da Rede.

Com a Rede, os produtores passaram a negociar o valor dos seus produtos diretamente com as empresas, pulando o intermediário. O primeiro contrato foi com a empresa Firmenich, em 2009. Depois dela, muitas outras empresas apareceram ao longo dos anos.

Do lado da produção, a Rede foi  ganhando adesão de novas cantinas, paióis (lugares para secagem dos produtos nas comunidades) e mini-usinas (que processam os produtos in natura, fazendo óleos, farinhas etc).

Apesar de ter começado com as Resex, com as populações ribeirinhas, hoje também conta com uma ampla participação dos povos indígenas da região. A Rede está conectada a 20 associações comunitárias de sete Terras Indígenas e três Reservas Extrativistas, além da Comunidade Maribel e da Associação Agroextrativista Sementes da Floresta, da Transamazônica. Ao todo, são mais de nove milhões de hectares, beneficiando diretamente mais de três mil pessoas.

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Kokote Xikrin, primeira mulher mẽbengôkre da Terra Indígena Trincheira-Bacajá a coordenar a gestão de uma mini-usina de extração de óleo de coco babaçu, aplica pintura corporal.  À esquerda, extração de látex de seringueira |Soll Sousa/SUMAÚMA

“A rede não discute só produção, ela não vende só produto, ela discute sobre proteção territorial, saúde, educação, política como um todo.  “As comunidades que não têm essa mentalidade de manter esse legado da floresta não adianta vir para a discussão na rede”, diz Nei Xipaya, cantineiro e  liderança da Terra Indígena Xipaya.

Com muitas conquistas a comemorar, a Rede enfrenta desafios importantes. A destruição dos últimos quatro anos do governo Bolsonaro ainda é um dado presente nestes territórios. As Resex e as Terras Indígenas da região sofrem com  invasões, desmatamento, garimpo e roubo de madeira. Na Terra Indígena Trincheira Bacajá, do povo indígena Xikrin, por exemplo, os invasores têm destruído áreas importantes de castanhais, prejudicando a coleta do produto.

No próprio Riozinho do Anfrísio, há uma explosão de abertura de estradas ilegais, utilizadas para o roubo de madeira. De 2017 a 2022, o número de quilômetros de estradas ilegais dentro da Resex aumentou em 48%. A chegada desses criminosos, além da destruição em si, também desestrutura as relações comunitárias. Existe o risco iminente de aliciamento da juventude.

Nesse contexto, a Rede tornou-se ainda mais vital para mostrar outros caminhos possíveis enquanto a ilegalidade bate com força na porta dessas comunidades. “A meta é que a cantina consiga absorver os produtos todos da aldeia, produtos da floresta, da roça, do artesanato. Porque, se não, você pode perder para outras práticas atrativas como o garimpo, o roubo de madeira, que estão aí na porta das comunidades”, afirma Nei Xipaya.

Muito mais do que produtos

Em 2023, a Rede viveu outro desafio: as castanheiras tiveram dois anos de grande produção, jogando o preço do produto lá embaixo devido à grande oferta e ao estoque acumulado nas empresas.

A principal compradora do produto na Terra do Meio  também sofreu efeitos da crise econômica e não conseguiu ampliar muito o volume de compra em um cenário de preços baixos e alto volume. Assim, parte da produção foi negociada com os valores baixos praticados pelo mercado, que impactou castanheiros em toda Amazônia..

A verdade é que, na prática, economias da sociobiodiversidade, sustentáveis, regenerativas, circulares possuem desafios gigantescos para concorrer com economias que buscam exclusivamente a maximização dos lucros e degeneram ecossistemas e vidas.

Como garantir um preço razoável na mão do produtor, que possibilite uma renda digna, conserve e regenere ecossistemas e ainda seja competitivo junto ao mercado ou consumidor final?

Clique e assista:  O que é a economia da sociobiodiversidade? #OFuturoPodeSerOutro

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Outro ponto importante é garantir a real participação das comunidades e dos produtores nos processos de decisão. Os pontos precisam ser discutidos em reuniões e assembleias definidas para tal, e as decisões devem ser representativas do desejo dos presentes, e não algo de cima para baixo.

Manter esses espaços é um trabalho constante, mas é o que garante que a Rede não seja meramente um local de  compra e venda de produtos, mas um espaço de troca e discussão das questões importantes dessas comunidades.

“O que eu vejo que a empresa que vem aqui não busca somente o produto, mas a história, o modo de vida, a proteção do território e a vivência do povo naquele local, pra não deixar sair de lá”, afirma Raimunda Rodrigues, ribeirinha, extrativista e gestora da mini-usina da comunidade Rio Novo, na Resex Rio Iriri.

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Raimunda Rodrigues, ribeirinha, extrativista e gestora da mini-usina da comunidade Rio Novo, na Resex Rio Iriri, fala na 9ª Semex 📷 Soll Sousa/SUMAÚMA

O desafio da Rede, portanto, é esse: construir caminhos, parcerias e soluções que agreguem todos os valores, conhecimentos e serviços associados ao manejo da floresta realizado pelos comunitários ao trabalharem com suas castanheiras, seringueiras, roçados e outras atividades.

Os trabalhos realizados pelas comunidades ao manejarem o território através de seus conhecimentos tradicionais e inovações devem ser entendidos como serviços de conservação do bioma. Esse manejo – que transforma de forma contínua floresta em floresta e não em pasto ou monocultura de soja – promove e entrega agro e biodiversidade, sequestra e estoca carbono, fertiliza o solo, mantêm os ciclos hidrológicos do rio Xingu, que garante a água para as cidades e para a Usina Hidrelétrica de Belo Monte e gera os rios voadores que garantem a chuva no centro oeste e sudeste.

Sem essas chuvas as grandes cidades estariam desabastecidas e os grandes produtores de leite, carne, soja, laranja e cana não conseguiriam produzir, nem mesmo com todos os subsídios que recebem para se manterem competitivos globalmente.  

Parte do desafio se encontra em estruturar parcerias que consigam inovar e buscar soluções que agreguem esses valores em seus modelos de negócio e em políticas públicas. Ao longo dos anos, a Rede vem construindo relações duradouras e inovadoras que buscam conjuntamente soluções tecnológicas e de negócio para superarem gargalos da competitividade das cadeias da sociobiodiversidade com produtos substitutos sintéticos ou oriundos de monoculturas.

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Participantes da 9ª Semex, que aconteceu na Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, na Bacia do Xingu, no Pará 📷 Soll Sousa/SUMAÚMA

Ali na Semex, estavam presentes representantes do setor privado –  Amázzoni, Mazô Maná, Manioca, Mercur, Citrobio, Moma, Cura da Floresta e Alpargatas – e do governo – CONAB, FUNAI e ICMBio. 

“Estamos aqui discutindo futuro e novas formas de promover economias verdadeiramente sustentáveis. As comunidades da Terra do Meio manejam essa floresta há milênios e vão continuar conservando a floresta viva porque isso está conectado às culturas e modos de vida de cada povo e comunidade da região . Quando as empresas vêm aqui não estão buscando meramente insumos e matérias-primas para seus produtos, estão buscando rastreabilidade e garantia de origem, que conectem esses produtos à floresta viva, manejada por pessoas, com base em seus conhecimentos e modos de vida. Mais do que produtos, o que está sendo negociado conhecimentos e práticas de manejo e de governança que prestam serviços socioambientais de conservação”, diz Jeferson Straatmann, colaborador do ISA membro da Secretaria-Executiva da Rede.

“Essa Semex, a nona, foi o maior evento que aconteceu, que teve mais empresas envolvidas. Quando você vê a linha do tempo, todas aquelas empresas que já passaram, você vê que é uma grande conquista”, afirma Raimunda Rodrigues.

“Hoje a gente vê as empresas como meio de comunicação para quebrar lá fora no mundo do branco os preconceitos que têm em relação aos nossos povos, “ah, são preguiçosos”. Muito pelo contrário, são povos que desde o princípio da colonização lutam pela sua valorização”, afirma Nei Xipaya.

Para ele, ao colocar um produto da floresta na mesa do consumidor da cidade, as empresas ajudam a aproximar esses mundos e quebrar preconceitos. “Hoje você vê uma discriminação de muitos principalmente da classe alta de querer menosprezar esses povos “ah eu uso um vestido, uma caneta, um produto importado. Mas de onde vem a origem dele? Vem daqui, da floresta.”keyboard_arrow_leftkeyboard_arrow_right

Participantes da 9ª Semana do Extrativismo, que aconteceu na Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio|Soll Sousa/SUMAÚMA

Participantes da 9ª Semana do Extrativismo, que aconteceu na Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio|Soll Sousa/SUMAÚMA

Participantes da 9ª Semana do Extrativismo, que aconteceu na Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio|Soll Sousa/SUMAÚMA

Participantes da 9ª Semana do Extrativismo, que aconteceu na Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio|Soll Sousa/SUMAÚMA

Fonte: https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/no-xingu-economia-do-futuro-fica-dois-dias-de-barco-subindo-o-rio

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