Caso aprovada, proposta de Bolsonaro pode comprometer a saúde indígena, a biodiversidade brasileira e a segurança alimentar planetária
Assim, como quem não quer nada, deixando todo o foco na regulamentação da mineração, da geração de energia e da exploração de petróleo e gás, o Projeto de Lei 191/2020, recém enviado pelo Presidente da República ao Congresso, pretende liberar o cultivo de transgênicos nas Terras Indígenas e a pesquisa com organismos geneticamente modificados nas Unidades de Conservação. No seu antepenúltimo artigo, nas disposições transitórias, o PL reescreve a Lei 11.460/2007, que trata do plantio de organismos geneticamente modificados em UCs e TIs.
Essa lei, em seu primeiro artigo, veta a pesquisa e o cultivo de organismos geneticamente modificados (OGMs), como as plantas transgênicas, dentro de TIs e UCs com exceção das Áreas de Proteção Ambiental (APAs). A nova redação, sugerida pelo PL 191/2020, mantém apenas a vedação ao cultivo de OMGs nas unidades de conservação, exceto as APAs.
A ideia de cultivar transgênicos em TIs tem significados e desdobramentos dignos de preocupação. O primeiro tem relação direta com a segurança alimentar dos povos indígenas, pois pode levar à contaminação de suas sementes crioulas, ou seja, aquelas tradicionalmente usadas por eles. Em consequência, os índios não perderiam apenas suas sementes, mas também se tornariam dependentes de “pacotes tecnológicos” que vinculam o cultivo de sementes ao uso de agrotóxicos e outros aditivos caros e muitas vezes inadequados para seus hábitos alimentares.
Casos como os dos índios Krahô servem de alerta para essa possibilidade. Eles foram fisicamente massacrados na década de 1940 e, no processo de fuga para salvar suas vidas, perderam sementes tradicionais, sendo lançados numa situação de extrema penúria e de dependência total de alimentos vindos de fora do território.
Segurança alimentar
O segundo desdobramento tem relação com a segurança alimentar global. É nas sementes tradicionais, crioulas, com sua enorme diversidade genética, que reside a possibilidade de resistência contra pragas e doenças de plantas, bem como de adaptação às mudanças do clima. Sem esse repositório de possibilidades existente na biodiversidade, a segurança alimentar do planeta fica mais frágil.
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Um caso que ilustra esse potencial impacto reside na história da Irlanda e da “fome das batatas”, que matou, no século 19, cerca de um milhão de pessoas, levou outro milhão a abandonar o país às pressas e outras três milhões de pessoas a saírem nas décadas subsequentes. À época, todas as batatas cultivadas na Irlanda eram geneticamente idênticas e uma única praga matou todas elas. Muitas outras histórias mostram a gigantesca importância de preservar a diversidade genética das espécies.
Os casos de contaminação de variedades de plantas nativas e crioulas são cada vez mais frequentes. Como o da contaminação da soja orgânica plantada no Rio Grande do Sul com soja transgênica. Nos Estados Unidos e no Canadá, as variedades convencionais de canola estão, em grande parte, contaminadas por variedades transgênicas. No México, centro de origem do milho, as variedades transgênicas contaminaram as populações silvestres de milho, afetando o repositório de diversidade deste grão, com possíveis consequências para toda a humanidade, no futuro.
Direitos territoriais indígenas
Um outro significado, menos evidente, é a tentativa de homogeneizar práticas e modos de vida. Se todos comem a mesma coisa e possuem os mesmos cultivos, importante parte da cultura se esvai e isso pode levar a questionamentos dos direitos territoriais indígenas. Esse aspecto não deve ser menosprezado no contexto da forte ofensiva contra os direitos indígenas que acontece no país nesse momento.
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As UCs, que sequer são objeto explícito do PL, acabam sendo também prejudicadas na proposta. A eventual abertura para que pesquisas com organismos geneticamente modificados sejam feitas no interior dessas áreas pode trazer ainda mais ameaças para a biodiversidade brasileira, causada pela contaminação com consequências desconhecidas. Espécies transgênicas podem se multiplicar na natureza, competir com a vegetação natural, promover resistências e suscetibilidades inesperadas entre as plantas e causar danos a fauna local.
Em resumo, de uma tacada só, com um artigo camuflado em um mar de maldades, o PL 191/2020 ameaça a sobrevivência física e simbólica dos povos indígenas, a segurança alimentar planetária e a biodiversidade brasileira.
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