Crianças conduziram a marcha que reuniu povos indígenas e comunidades tradicionais em Paraty (RJ) em setembro 📷 Taynara Borges/ISA
Representantes de povos indígenas e comunidades tradicionais de todo o Brasil caminharam lado a lado no ato “a luta para o Bem Viver”, que percorreu as ruas de Paraty (RJ) durante o 1º Encontro Internacional de Territórios e Saberes (EITS), ocorrido no mês de setembro.
Evidenciando propositalmente um contraste com os fortes resquícios coloniais do centro histórico da cidade, a caminhada em defesa da garantia de direitos fundamentais foi uma das mais de 70 atividades realizadas entre os dias 09 e 13 de setembro no encontro avaliado pelos movimentos e por parceiros como “histórico”.
Ao longo de uma semana, mais de 1.500 pessoas, dentre representantes de povos originários e comunidades tradicionais vindos de 22 países dos cinco continentes, compartilharam conhecimento, fortaleceram a resistência e expuseram a riqueza cultural de seus modos de vida e territórios, especialmente no que se refere aos caminhos para a conservação da vida no planeta.
O encontro foi marcado por denúncias acerca “dos imensos danos que o modelo colonialista capitalista gerou e continua gerando” em cada território originário e tradicional pelo Brasil.
E teve como objetivo a redação de uma carta com a apresentação de soluções que já são praticadas nos territórios pelas mãos e mentes dos povos e comunidades tradicionais, visando sua incidência na COP 30, a ser realizada no Brasil, em Belém (PA), em 2025.
A Carta Final do 1º Encontro Internacional de Territórios e Saberes (EITS) é explícita: “No fundo, as soluções para adiar o fim do mundo já́ existem nos territórios. Para conhecê-las, é preciso sair dos gabinetes, pisar nas terras onde os saberes tradicionais resistem, preservados. […] O território fala. Pois, escutemos! Aprender com o que os territórios tradicionais falam é urgente”.
A missiva e todas as demais atividades propostas pelo EITS tiveram um protagonismo muito bem demarcado. Foram as organizações dos povos e comunidades tradicionais que convidaram as universidades, os institutos de pesquisa, as instituições da sociedade civil e representantes do governo, em particular do Executivo Federal, a ouvir e aprender com quem, há séculos, preserva e aponta os caminhos para um Brasil mais verde e diverso.
“É excelente. Nós precisávamos mesmo de algo tão grandioso assim. Porque precisamos garantir que haja uma construção transversal de políticas para povos e comunidades tradicionais. Nossas culturas, territórios e modos de vida estão sendo atacados por mineradoras, por grandes empreendimentos ou por unidades de conservação integral que acabam com as comunidades”, denuncia Dauro Marques do Prado, morador da Jureia e integrante da Coordenação Nacional de Comunidades Tradicionais Caiçaras (CNCTC) e do Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira.
Na avaliação da organização do encontro, o EITS cumpriu com a proposta de estabelecer um marco histórico na articulação entre os movimentos e de demarcar a importância de seus saberes tradicionais e ancestrais para o conhecimento científico, especialmente no contexto das mudanças climáticas que empreendem eventos extremos ao redor do mundo.
O 1º Encontro Internacional de Territórios e Saberes partiu de uma iniciativa do Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba (FCT) e do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS) em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Universidade Federal Fluminense (UFF), a Universidade Estadual Paulista (Unesp) e o Colégio Pedro II.
Força, articulação e estratégia
Tendo por pano de fundo a finalização da carta de incidência na COP 30, o encontro foi uma tentativa de amplificar o que os povos e comunidades tradicionais da região fizeram lá em 2007 quando da criação do Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba (FCT), uma união entre indígenas, caiçaras e quilombolas na resistência por seus territórios e na luta pelos tantos direitos comuns historicamente negados a estes coletivos.
Paraty é o primeiro Patrimônio Mundial Misto (natural e cultural vivo, não em ruínas) reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) na América Latina. Para a coordenadora cultural da Unesco no país, Isabel de Paula, a realização do encontro na cidade “é de uma representatividade internacional única”.
“É de imensa relevância este encontro neste momento, quando um em cada três sítios do patrimônio cultural está sendo afetado pelas mudanças climáticas. E não é possível enfrentar esta realidade sem a valorização dos saberes e dos modos de vida de povos e comunidades tradicionais. Precisamos reforçar que ao perder a terra as pessoas perdem sua cultura e seus modos de vida. Vamos nos lembrar do lema da ONU: não deixar ninguém para trás”, defende a coordenadora.
Uma das estratégias propostas pela organização foi a sensibilização por meio da experiência. Por isso, os dois primeiros dias foram dedicados a vivências nos territórios indígenas, caiçaras e quilombolas da região que deram oportunidade para que todos os “não comunitários” experienciassem a riqueza cultural, a diversidade produtiva e os acúmulos de saberes dos quais os povos e comunidades tradicionais são detentores.
Nos demais dias, as discussões da programação se deram em torno de cinco eixos temáticos estratégicos: “Articulação em Redes”, “Educação, cultura e modos de vida”, “Ecologia de Saberes para a promoção do Bem Viver”, “Oceanos e Rios – redes de vida e saberes” e “Saúde, resiliência e organização social”.
Ao propor 76 atividades simultâneas, que ocorreram em três espaços montados em diferentes pontos da cidade, o FCT intencionou demonstrar a força da capacidade de articulação quando da união dos comunitários. A infraestrutura contou com auditório, cozinha com refeitório, tendas para os encontros e espaços de descanso, além de palcos para apresentações culturais e feira com venda de produtos artesanais.
Todos os participantes se alimentaram gratuitamente com refeições preparadas pela Cozinha das Tradições, uma organização de mulheres do FCT que se dedicam ao fortalecimento das culturas alimentares tradicionais e destacam a riqueza e a diversidade produtiva dos territórios mantendo vivos pratos típicos preparados com ingredientes locais e técnicas ancestrais.
Território: vida, cultura e abundância
“O território é onde a gente produz a vida. Para nós, a terra não é comércio. Essa é a proposta do sistema capital. Ele empobrece as pessoas. Nós moramos numa região onde preservamos a maior área contínua de Mata Atlântica que resta no Brasil. Mas, para o capital, é a região mais pobre do estado de São Paulo. Nós não somos pobres. Ali há uma riqueza abundante. Então tudo isso está ligado: a manutenção deste espaço, a manutenção da vida, a manutenção da cultura e manutenção das gerações futuras.”
A fala é de Laudessandro Marinho da Silva, liderança do Quilombo Ivaporunduva (Eldorado-SP), durante a discussão “Cultura e identidade: preservação e salvaguarda do patrimônio cultural como estratégia de defesa dos territórios tradicionais”.
“Nós estamos aqui dando subsídios para que aqueles que vão lá para os governos saibam o que cada comunidade precisa. Nós sofremos muita opressão. O Brasil foi fundado em cima disso. Precisamos nos libertar! Mas desde o nível municipal, os governantes não aceitam nossa presença, não dialogam, não nos recebem em seus gabinetes. Eles querem nos vencer pelo cansaço. Mas não vamos desistir.”
Assim enfatizou Edvina Silva, a Dona Diva, do Quilombo Pedro Cubas de Cima (Eldorado-SP) que, ao lado de Laudessandro, comentou a experiência das comunidades quilombolas da região do Vale do Ribeira (SP) cujo Sistema Agrícola Tradicional (SAT) fora reconhecido enquanto Patrimônio Cultural Brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (Iphan).
“Estas sementes modificadas que estão nas casas de agricultura exigem muitos insumos para serem cultivadas. Mas as nossas sementes crioulas, que preservamos há mais de 400 anos, não. Elas são resistentes ao nosso manejo. É por isso que fizemos em agosto nossa 15ª Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, para poder resgatar nossa cultura. Isso faz parte da garantia dos quilombolas no território. Essa é a importância do patrimônio”, reforçou Laudessandro.
Rede Nhandereko de Turismo de Base Comunitária
Com o encerramento das atividades, ao final de semana os participantes puderam conhecer parte dos roteiros turísticos que serão oferecidos pela Rede Nhandereko de Turismo de Base Comunitária, que reúne visitas guiadas, alimentação e hospedagem em territórios indígenas, caiçaras e quilombolas no litoral sul do Rio de Janeiro e litoral norte de São Paulo.
Idealizada pelo Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba (FCT), a rede é inteiramente articulada e gerida pelas comunidades e foi lançada durante o EITS como o primeiro produto a ser comercializado no Armazém do Território, uma loja física localizada no centro histórico de Paraty, também inaugurada na ocasião, para comercialização de produtos das comunidades, desde alimentos até o artesanato.
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