Por 18 dias, foram percorridos cerca de mil quilômetros nos rios Uaupés, Negro e Demeni, acompanhando o Sistema Agrícola Tradicional e o trabalho dos Aimas

Sob o efeito do calor do fogo, lentamente a maniva (mandioca) colhida na roça, ralada e peneirada vai se transformando num dos principais alimentos dos povos indígenas do Rio Negro: a farinha. Com força, paciência e cadência, os farelos são jogados para cima e vão ganhando espaço e colorindo de amarelo a casa de forno, num processo milenar que faz parte do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro (SAT-RN).

É na roça-floresta – onde o cultivo de alimentos se dá em meio à mata – que se sustenta esse sistema, reconhecido como patrimônio cultural brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

As práticas que envolvem a agricultura e todo um sistema cultural indígena, a economia dos povos da floresta, os impactos climáticos e as observações feitas pelos Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (Aimas) foram registrados pela National Geographic em expedição pelo Rio Negro. A reportagem foi realizada com apoio do Instituto Socioambiental (ISA), da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e da Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas.

Durante a expedição, que durou 18 dias, foram percorridos cerca de mil quilômetros nos rios Uaupés, Negro e Demeni, além de igarapés e igapós, em São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, municípios do Amazonas cercados pela floresta amazônica.

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Durante a expedição, que durou 18 dias, foram percorridos cerca de mil quilômetros nos rios Uaupés, Negro e Demeni 📷 Fellipe Abreu/NatGeo

Foram entrevistadas ao menos 27 pessoas em 27 comunidades, sítios, roças, cozinhas, casas, trilhas, feiras e até voadeiras – como são chamados na região os pequenos barcos a motor. A grande maioria das pessoas ouvidas é formada por indígenas de etnias como Baniwa, Tukano, Baré, Piratapuya, Tariano, Tuyuka. Algumas entrevistas foram feitas em língua indígena.

Em São Gabriel e Santa Isabel, as comunidades visitadas estão no território indígena Médio e Alto Rio Negro, mas em Barcelos o processo de demarcação está pendente. A reportagem ainda registrou os trabalhos na Casa de Pimenta, na comunidade Yamado, em frente à principal orla de São Gabriel da Cachoeira, e a Casa de Frutas, em Santa Isabel do Rio Negro, duas iniciativas desenvolvidas pelo ISA e Foirn que estão em consonância com ações de salvaguarda do SAT-RN, criando alternativas econômicas para incentivar os meios tradicionais de agricultura e atividades sustentáveis.

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Ilma Nery, técnica de produção do povo Piratapyua, manuseia abacaxi  na Casa de Frutas de Santa Isabel do Rio Negro 📷 Fellipe Abreu/NatGeo

Durante os trabalhos foram entrevistadas as mães das roças – mulheres indígenas responsáveis por cuidar da roça e, ainda, garantir a permanência dos cultivos –, lideranças indígenas, conhecedores tradicionais, pescadores, agricultores e pesquisadores: indígenas que conhecem a fundo a floresta, as roças e seus ciclos.

A reportagem teve início em São Gabriel da Cachoeira, conhecida por ser a cidade com maior concentração de população indígena do país. Em seguida, a equipe seguiu para o Baixo Rio Uaupés, na comunidade de Açaí-Paraná, onde o Agente Indígena de Manejo Ambiental (Aima) Rosivaldo Miranda, do povo Piratapuya, relatou a observação da alteração dos ciclos ambientais e os impactos da emergência climática.

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Rosivaldo Miranda, Aima do povo Piratapuya, é filmado por drone da expedição que percorreu o Rio Negro 📷 Moisés Baniwa/Rede Wayuri

Um raro registro mostra o processo de retirada das minhocas daracubis, que se alojam em bromélias na tentativa de fugir das enchentes. Com o desequilíbrio dos ciclos, está mais difícil encontrá-las, o que interfere na pescaria e na alimentação.

Foram feitas visitas a roças de maniva e pimenta, às feiras em São Gabriel da Cachoeira, onde a diversidade de produtos e pratos típicos pode ser conferida. As mulheres assumiram o protagonismo nas entrevistas, sendo as grandes responsáveis pelas escolhas dos alimentos que vão sustentar suas famílias. E são elas também que transformam as manivas em alimentos como beiju, curadá, tapioca, farinha, tucupi e até na bebida fermentada caxiri.

Em Santa Isabel do Rio Negro, a equipe acompanhou a produção de farinha e da colheita do açaí, além de registrar as iniciativas da Casa de Frutas e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), ambos projetos que adquirem os produtos das roças tradicionais.

A expedição terminou em Barcelos, município bastante castigado pelos eventos climáticos. Em 2016, foi registrada uma seca extrema com incêndio em áreas de igapós que secaram. O cenário que se vê agora – depois de dois anos seguidos de cheias intensas do Rio Negro – é uma longa extensão de árvores queimadas em áreas inundadas.

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A agente indígena de manejo ambiental Dilani Farias, do povo Baré, mostra o Igapó queimado em Barcelos 📷 Ana Amélia Hamdan/ISA

Pode parecer uma contradição, mas é o que se vê: as plantas que pegaram fogo em 2016, agora estão em área alagada depois de o Estado do Amazonas atravessar em 2021 uma enchente recorde do Rio Negro e, em 2022, outra cheia intensa.

Relatos de inundações e desequilíbrio climático foram constantes entre os entrevistados. Ao mesmo tempo, se verificou uma grande capacidade de resiliência dos povos indígenas que mantêm vivo o sistema agrícola tradicional. A reportagem mostra a necessidade do equilíbrio climático para a manutenção desse sistema e traz a indagação: até quando é possível manter de pé a roça-floresta?

Fonte: https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/rio-negro-expedicao-registra-roca-floresta-indigena-e-efeitos-da

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