Ministério e movimento social já avisaram que vão entrar com ações contra nova lei. Diferentemente da questão indígena, governo consegue manter maioria dos vetos sobre Lei da Mata Atlântica

Oswaldo Braga de Souza – Jornalista do ISA

A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e a deputada Célia Xakriabá protestam contra o ‘marco temporal’ na sessão do Congresso 📷 Geraldo Magela / Agência Senado

O Congresso derrubou, na tarde desta quinta (14), a imensa maioria dos vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Lei n° 14.701/2023, o maior ataque aos direitos indígenas em décadas. Dos 47 vetos analisados pelos parlamentares, 41 foram rejeitados, por 321 votos a 137 e uma abstenção, na Câmara, e 53 votos a 19, no Senado

Entre os retrocessos do texto da nova lei, que será agora promulgada, está o chamado “marco temporal” das demarcações das Terras Indígenas (TIs). De acordo com a tese ruralista, só teriam direito às suas terras as comunidades indígenas que estivessem em sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. 

A interpretação ignora as expulsões e violências cometidas contra essas populações, em especial nas últimas décadas. Na prática, pode inviabilizar grande parte das demarcações, por questionamentos administrativos ou judiciais.

A votação foi adiada por várias semanas. Diante de uma correlação de forças desfavorável  e das promessas feitas por Lula de defender os direitos dos povos originários, o governo vinha tentando evitar uma derrota que expõe mais uma vez a fragilidade de sua articulação política e de sua base parlamentar.  

Apesar dos líderes governistas terem defendido os vetos, parte da base posicionou-se contra eles, garantindo sua derrubada (veja como votou cada deputado e cada senador). O caso mais notório é o do ministro da Agricultura, Carlos Fávaro (PSD-MT), que se licenciou do cargo, reassumiu o mandato de senador e votou contra o veto.

Integrantes do movimento indígena e de organizações da sociedade civil tem acusado a articulação política do Planalto de usar as pautas socioambientais, como o “marco temporal”, como moeda de troca para aprovar outros projetos, que seriam mais prioritários, em especial da agenda econômica. 

A votação também desafia decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou inconstitucional a tese ruralista, por 9 votos contra 2, em setembro. Na mesma decisão, os ministros da Corte também fixaram teses complementares sobre a demarcação, a exemplo da indenização pela terra nua para ocupantes não indígenas.  

No mesmo dia em que o julgamento foi concluído, o Senado aprovou o PL 2.903, agora Lei 14.701, numa reação conservadora ao que oposição e ruralistas consideram ser uma usurpação pelo STF da competência dos parlamentares de decidir sobre esse e outros temas, como a descriminalização do aborto e do porte de drogas. Duas semanas depois, o presidente Lula vetou cerca de dois terços do projeto, inclusive justificando parte dos vetos com a decisão do Supremo.  

Parlamentares de esquerda protestam contra a derrubada do veto ao 'marco temporal' na sessão do Congresso | Jefferson Rudy | Agência Senado
Parlamentares de esquerda protestam contra a derrubada do veto ao ‘marco temporal’ na sessão do Congresso 📷 Jefferson Rudy|Agência Senado
Votação não é ponto final

O resultado da votação pode ser considerado uma derrota para os povos originários, os movimentos sociais e as organizações de defesa dos seus direitos, mas não é o ponto final dessa história. Pouco depois do final da votação no Congresso, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) informaram que devem entrar com ações contra o texto final da lei no STF. A referência para a análise dessas possíveis ações será o julgamento encerrado em setembro.

“A decisão do Congresso Nacional desrespeita a Constituição, os povos indígenas e o futuro do Brasil. Vamos acionar a Advocacia Geral da União para dar entrada no STF com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, para garantirmos o cumprimento da decisão já tomada pela alta corte”, disse a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara. 

“É um absurdo que, enquanto o mundo reconhece os povos indígenas e seus territórios como uma das alternativas para conter a crise climática [por barrarem o desmatamento], o Congresso Nacional age totalmente na contramão daquilo que precisa ser feito para conter essa crise global”, reforçou a ministra.

“A Apib reforça que direitos não se negociam e que a aprovação do Marco Temporal é ilegal”, apontou a entidade, em nota nas redes sociais. “A principal Conferência, que trata sobre mudanças climáticas, a COP 28, foi encerrada nesta semana e o Congresso Nacional mais uma vez reforça seu compromisso com a morte”, completou. 

Ao longo do dia, cerca de 300 indígenas, de diferentes regiões do país, protestaram em defesa dos vetos do lado de fora da Câmara. Deputados da Frente Parlamentar de Defesa dos Direitos Indígenas e de partidos de esquerda discursaram na manifestação. Após a votação, os manifestantes foram para a frente do Supremo Tribunal Federal (STF). Lideranças da Apib também prometeram uma onda de mobilizações contra a nova lei.

Indígenas manifestam-se contra 'marco temporal' do lado de fora da Câmara dos Deputados | @tukumapataxo / Apib
Indígenas manifestam-se contra ‘marco temporal’ do lado de fora da Câmara dos Deputados 📷 @tukumapataxo/Apib
‘Visão reacionária’

“O Congresso acaba de aprovar o maior retrocesso aos direitos indígenas desde a Constituinte. É lamentável que o parlamento esteja dominado por uma visão reacionária e equivocada, que quer eliminar os direitos territoriais indígenas por meio de leis inconstitucionais”, critica a advogada do ISA Juliana de Paula Batista. “Agora, a questão volta para o STF, que deve reiterar o seu compromisso com a defesa dos direitos das minorias”, pontua. 

Líderes ruralistas, como o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), Pedro Lupion (PP-PR), sinalizaram que pretendem reagir a uma nova decisão do STF contra o “marco temporal” por meio da aprovação de uma proposta que incorpore a tese à Constituição. O placar da votação desta quinta indica que seria possível alcançar os votos necessários: três quintos dos votos dos deputados (308) e dos senadores (49).

Respondendo ao alerta de alguns governistas de que o tema deve ir parar mais uma vez no STF, o líder da oposição no Senado, Rogério Marinho (PL-RN), reforçou o discurso de confronto com a Corte. “Nós somos um Parlamento livre e não devemos aceitar e tolerar amarras e mordaças”, disse. “Ou nós nos afirmamos e nos damos ao respeito ou ninguém nos respeitará”, completou. 

“Os parlamentares ruralistas parecem não compreender que os poderes organizam-se em um sistema de freios e contrapesos. É papel do STF fazer a defesa dos direitos das minorias, mesmo quando as maiorias não gostam”, contrapõe Juliana Batista. 

Pontos mantidos na lei

Além do “marco temporal”, na votação foram derrubados os vetos e, portanto, incorporados na nova lei: a possibilidade de que qualquer interessado, a qualquer momento, possa questionar o procedimento demarcatório; a garantia à indenização pela “terra nua” a posseiros invasores de territórios indígenas; a garantia de que eles não sejam retirados da área enquanto não for realizado o pagamento da indenização; a permissão para implantação de intervenções militares e alguns empreendimentos e projeto econômicos, como estradas, sem consulta prévia às comunidades indígenas envolvidas.

Por outro lado, mediante um acordo entre governo e oposição, foram mantidos os vetos a dispositivos que permitiam o contato forçado com comunidades indígenas isoladas; a anulação de “reservas indígenas”, sob o argumento da “descaracterização cultural” da comunidade indígena; o cultivo de transgênicos nas TIs.

Lei da Mata Atlântica

A sessão do Congresso teve resultado só um pouco menos infeliz para a proteção ao bioma mais ameaçado do país: a Mata Atlântica. Também mediante um acordo entre governo e ruralistas, com apenas uma única exceção foram mantidos os vetos sobre artigos da Lei nº 14.595/2023, antiga Medida Provisória (MP) 1.150/2022, aprovada pelo Congresso em maio.

O texto original da MP alterava o novo Código Florestal (nº 12.651/2012) para que os produtores rurais pudessem ter até um ano após a “notificação” (individual) do órgão ambiental estadual para ingressar no chamado Programa de Regularização Ambiental (PRA). O problema é que, segundo a nova legislação, não há um limite de tempo para que essa notificação seja feita pelo governo. 

A Câmara dos Deputados incorporou na MP uma série de outras alterações no Código Florestal e também na Lei da Mata Atlântica (nº 11.428/2006) para retirar restrições ao desmatamento, beneficiar quem cometeu crimes ambientais e enfraquecer áreas protegidas. Várias dessas propostas foram consideradas “jabutis”, ou seja, dispositivos que não têm nenhuma relação com a redação original da MP. O presidente Lula vetou a imensa maioria das modificações.

Na votação desta quinta, foi derrubado apenas o veto ao dispositivo que afirmava que, a partir da assinatura do termo de compromisso do PRA e durante sua vigência, o produtor rural não poderá ter financiamentos negados por causa das infrações ambientais objeto desse termo. Portanto, a proposta será incorporada à legislação.  

Fonte: https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/ruralistas-oposicao-e-parte-da-base-governista-derrubam-vetos-de-lula-ao

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