Filme registra tributo da comunidade do Salgueiro à cosmologia dos Yanomami; assista!

Fabrício Araújo – Jornalista do ISA

Napê, nossa luta é sobreviver
Napê, não vamos nos render
Ya temi xoa, aê, êa
Ya temi xoa, aê, êa

“Ya Temi Xoa” foi o verso cantado a plenos pulmões por toda a comunidade negra da Acadêmicos do Salgueiro acompanhada de líderes Yanomami durante desfile na Avenida Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, em fevereiro deste ano. A frase, que traduzida para português significa “eu ainda estou vivo”, marcou o samba enredo “Hutukara” e agora também dá nome ao documentário que tem estreia online nesta segunda-feira (26/08). 

Assista!

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O curta de 20 minutos conta como a floresta amazônica se conectou com as favelas do Rio de Janeiro ao unir os Yanomami e o povo negro para fazer história. O filme mostra uma parte do desfile, os bastidores e as ideias que construíram o enredo inspirado na Hutukara – o céu que desabou na cosmologia Yanomami – que garantiu o 4º lugar à Salgueiro, ficando entre as seis campeãs do ano.

Uma parceria entre o Instituto Socioambiental (ISA) e a Hutukara Associação Yanomami (HAY), com a direção de Thomas Mendel, Ya Temi Xoa teve pré-estreia em Boa Vista, capital de Roraima. O evento recebeu lideranças indígenas e seus parceiros de organizações não governamentais, autoridades de órgãos federais, jornalistas e apoiadores da causa Yanomami.

estreia de ya temi xoa em boa vista
As lideranças Davi Kopenawa, Dario Kopenawa e Julio Ye’kwana fizeram falas após a exibição do curta 📷 Valdimarley Braga/Platô Filmes/ISA
estreia de ya temi xoa em boa vista
Filme que retrata a união dos Yanomami e da comunidade salgueirense estreou em cinema de Boa Vista 📷 Valdimarley Braga/Platô Filmes/ISA

Em meio a uma tragédia humanitária, escancarada ao mundo em janeiro de 2023, os Yanomami chamaram a atenção da escola de samba. Com uma pesquisa e aprofundamento na obra A Queda do Céu de Davi Kopenawa e Bruce Albert, os responsáveis pelo enredo entenderam que os Yanomami tinham muito mais a mostrar do que uma tragédia.

“Fiquei três ou quatro meses lendo muita sobre a cosmologia do povo yanomami, mas eu digo que o que mais me tocou foi ter o olhar do Davi”, afirma Igor Ricardo, jornalista e enredista da Salgueiro.

Igor conta que um dos esforços para construção do desfile foi justamente o de não colocar o povo Yanomami na posição de “coitados”. O conceito do espetáculo foi construído sob a ótica da exaltação à cosmologia e rica cultura destes indígenas. “A ideia da Hutukara era apresentar o povo Yanomami pela lógica do que eles são verdadeiramente e não pela ótica que a sociedade não indígena costuma ver na televisão, que é a ótica da tragédia. Então, quando pensamos nesse “Hutukara”, foi para mostrar a beleza desse povo, sobre quem é esse Omama, que é o deus da criação dele, sobre Yoasi, que é o deus da morte e destruição”, explica.

A Salgueiro foi a terceira escola a desfilar na primeira noite de apresentações. Além do homenageado Davi Kopenawa, líder e xamã dos Yanomami, outras 13 lideranças Yanomami estiveram presentes no carro “Por um Brasil Cocar”.

Meu Salgueiro é a flecha
Pelo povo da floresta
Pois a chance que nos resta
É um Brasil cocar

Da esquerda para a direita: o xamã Manoel Yanomami, o xamã e liderança Davi Kopenawa e a liderança Pedrinho Yanomami, no carro alegórico "Por um Brasil Cocar"
Da esquerda para a direita: o xamã Manoel Yanomami, o xamã e liderança Davi Kopenawa e a liderança Pedrinho Yanomami, no carro alegórico “Por um Brasil Cocar” 📷 Lucas Landau/Hutukara/ISA
Mc Rebecca representando “Yaroriyma Pë” em frente ao carro alegórico “Hutukara: a nova terra-floresta" durante o desfile da Salgueiro
Mc Rebecca representando “Yaroriyma Pë” em frente ao carro alegórico “Hutukara: a nova terra-floresta” 📷 Lucas Landau/Hutukara/ISA
Ala que representa a pesca, uma das principais atividades do dia a dia dos Yanomami, durante o desfile do Salgueiro
Ala que representa a pesca, uma das principais atividades do modo de vida dos Yanomami 📷 Lucas Landau/Hutukara/ISA

Para fugir dos estereótipos, a escola pediu a assessoria de Davi Kopenawa na construção das alegorias. O xamã também participou da escolha da canção que emocionou a Salgueiro – recebendo 10 de todos os jurados em seu respectivo requisito. “Neste lugar estão trabalhando em algo muito importante e estão fazendo um bom trabalho para ajudar na nossa luta, ajudar a defender o meu povo, ajudar a defender o nosso direito. Fiquei contente que estão trabalhando e fazendo as coisas para sair bonito e mostrar para toda a cidade”, conta o xamã em trecho do documentário que mostra sua visita à escola de samba durante os preparativos para o desfile.

Hutukara, ê! Sonho e insônia
Grita a Amazônia, antes que desabe
Caço de tacape, danço o ritual
Tenho o sangue que semeia a nação original

Eu aprendi português
A língua do opressor
Pra te provar que meu penar também é sua dor

Falar de amor enquanto a mata chora
É luta sem flecha, da boca pra fora

Floresta e morro se encontram

O real encontro de Davi Kopenawa com o  povo do Salgueiro se deu meses antes do desfile na Sapucaí. Davi foi convidado para estar presente na final da escolha do samba, em 13 de outubro de 2023. Eram 23 sambas inscritos falando sobre a Hutukara e nesse dia um deles seria escolhido para ser cantado na avenida.

Ao chegar no Rio de Janeiro, Davi seguiu para o Morro do Salgueiro, no Caxambu, centro cultural que guarda as tradições afro-brasileiras da comunidade. Foi recebido com uma apresentação de Dança de Jongo, onde ao som de tambores, as matriarcas da escola cantaram e dançaram para recepcionar o líder Yanomami. Momentos depois, Davi disse que ficou emocionado ao ver as mulheres dançando e que elas o fizeram se lembrar de suas tias, que são as guardiãs da cultura yanomami.

Davi Kopenawa, xamã Yanomami, em visita ao Morro do Salgueiro
Davi Kopenawa visitou o Morro do Salgueiro em outubro de 2023, quando a escola estava prestes a escolher o samba-enredo 📷 Lucas Landau/Hutukara/ISA
Davi Kopenawa (camisa azul), xamã Yanomami, com dançarinas de jongo, que participam de um projeto social no morro do Salgueiro, de resgate da dança tradicional que deu origem ao samba; e lideranças do projeto Erveiras e Erveiros do Salgueiro, que fazem o resgate do conhecimento tradicional sobre ervas para usos medicinais e religiosos na comunidade
Davi Kopenawa reunido com dançarinas de jongo, que participam de projeto social no morro do Salgueiro para o resgate da dança tradicional que deu origem ao samba, e lideranças do projeto Erveiras e Erveiros do Salgueiro, que fazem o resgate do conhecimento tradicional sobre ervas para usos medicinais e religiosos na comunidade 📷 Lucas Landau/Hutukara/ISA

No morro, Davi conversou com muitas delas e conheceu o trabalho das erveiras, mulheres conhecedoras das plantas que curam e que mantêm um projeto para registro e aprendizado desse conhecimento pelas novas gerações.

Ao descer o morro, Davi disse que já esteve muitas vezes no Rio de Janeiro, que foi levado para pontos turísticos, prédios bonitos e praias, mas que essa tinha sido a primeira vez que ele conheceu o povo que construiu a cidade e que depois foi empurrado para morar no morro, em cima das pedras, onde não é possível plantar.

Noite do desfile

Com diversas referências à cosmologia Yanomami, criticando a falsa “família de bem” e relembrando o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips, assassinados em 2022, o samba da Salgueiro mostrou a força, beleza e resistência do povo da maior Terra Indígena do Brasil na primeira noite do Carnaval do Rio de Janeiro.

Antes da sua bandeira, meu vermelho deu o tom
Somos parte de quem parte, feito Bruno e Dom
Kopenawas pela terra, nessa guerra sem um cesso
Não queremos sua ordem, nem o seu progresso

“A Salgueiro vai emocionar na avenida e mostrar a importância que é a gente cuidar da nossa terra e dos povos originários”. afirmou a rainha de bateria da Salgueiro, Viviane Araújo, minutos antes do desfile.

Para embalar a escola de samba e a arquibancada, a Salgueiro levou elementos do conhecimento milenar dos Yanomami e contou a história da Hutukara, que na cosmologia Yanomami representa o céu que desabou os levando para o plano em que vivem hoje.

Ritmista do Acadêmicos do Salgueiro segura tamborim com o escrito “Fora Garimpo”
Ritmistas da Acadêmicos do Salgueiro mostram tamborim com a mensagem “Fora Garimpo”, na Marquês de Sapucaí 📷 Thomas Mendel/Hutukara/ISA
Ala das baianas representando “THUËYOMA, A MÃE YANOMAMI” durante o desfile do Salgueiro
Ala das baianas representando “Thuëyoma, a mãe Yanomami” no desfile da Salgueiro em fevereiro 📷 Lucas Landau/Hutukara/ISA
comissão de frente da salgueiro
Comissão de frente “Ya Nomaim! Ya temo xoa! (Eu não morro! Ainda estou vivo)”, que representava os espíritos “xapiri” no desfile 📷 Lucas Landau/Hutukara/ISA

“Os Yanomami trouxeram uma parte cultural que nós não tínhamos conhecimento. Eles são bem enfáticos ao dizer ‘Ya Temi Xoa’ porque querem dizer que estão vivos, que a floresta está viva e acho que chegou a hora do Brasil entender esse povo que está aqui antes da colonização e que ainda têm força para dizer ‘estamos vivos’”, disse Silvania de Sant’anna, integrante da torcida oficial Amigos do Salgueiro.

A identidade dos Yanomami chegou à avenida com uma preparação que começou antes mesmo do desfile. Os indígenas escolheram usar suas pinturas tradicionais, além de acessórios feitos com sementes, penas e pequenas lascas de flechas. 

“A nossa história vive da mata, da selva, das frutas. Para nós, isso não é só um momento de tristeza, mas também temos alegria e precisamos ser valorizados”, disse Carlinha Santos, que além de professora é presidente da Associação das Mulheres Yanomami Kumirayoma (AMYK).

lideranças yanomami
Em pé, da esquerda para a direita: Julião, presidente da associação Parawana; João Figueiredo, presidente da AYRCA; Pedrinho, xamã Watoriki; Otavio Ironasiteri, presidente da Kurikama; Geraldo Yanomami; Ehuana Yanomami; xamã Manoel Yanomami; Carlinha Lins Yanomami; Davi Kopenawa Yanomami; Morzaniel Yanomami; Eliane Clara Opoxina. Agachados, da esquerda para a direita: Gilvania Borari; Joseca Yanomami; Júlio Ye’kwana e Dário Kopenawa Yanomami 📷 Tayná Uráz/Hutukara/ISA
pinturas corporais antes do desfile
Ehuana Yaira Yanomami pinta Eliane Clara Opoxina na concentração para o desfile 📷 Tayná Uráz/Hutukara/ISA
pinturas corporais antes do desfile sa salgueiro
Lideranças da Terra Indígena Yanomami se preparam antes de desfilar pela escola de samba Salgueiro 📷 Tayná Uráz/Hutukara/ISA
Encontro de lutas

A Terra Indígena Yanomami enfrenta uma invasão garimpeira e uma crise sanitária, ambas intensificadas no período de 2019 a 2022.

Em 21 de janeiro de 2023, menos de um mês após assumir o governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) visitou Boa Vista e chamou a atenção do mundo para os altos números de casos de malária e desnutrição entre os Yanomami. Um dia antes, uma Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) foi instaurada.

Em março de 2023, durante as comemorações de seus 70 anos, a Salgueiro anunciou “Hutukara” como o tema do seu desfile em 2024, mais uma vez chamando a atenção para a grave situação dos Yanomami. 

“É muito importante e tudo foi muito lindo. É muito importante que a Salgueiro tenha encontrado o nome do povo Yanomami, mesmo que tenha demorado, porque assim nós também encontramos o povo negro que também foram sofredores”, resumiu Kopenawa sobre a conexão entre a floresta amazônica e as favelas do Rio de Janeiro na parceria entre a Salgueiro e a Hutukara Associação Yanomami (HAY).

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Quadra da Salgueiro explode em comemoração após conquista do quarto lugar no Carnaval 2024 do Rio de Janeiro 📷 Tayná Uráz/Hutukara/ISA
davi kopenawa
Davi Kopenawa e Dario Kopenawa celebram quarta colocação da Acadêmicos do Salgueiro 📷 Tayná Uráz/Hutukara/ISA
salgueiro
Integrantes da escola cantam o samba-enredo que recebeu nota 10 dos jurados do carnaval carioca 📷 Tayná Uráz/Hutukara/ISA

Fonte: https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/ya-temi-xoa-como-comunidade-negra-e-os-yanomami-uniram-forcas-no-carnaval

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